terça-feira, abril 07, 2015

Opiniões


Claro que qualquer pessoa pode ter opinião sobe qualquer coisa. E, na verdade, todo mundo sempre teve opinião sobre tudo. O que mudou é que agora essas opiniões são escritas e postadas, ficam ali para apreciação de pessoas que conhecemos ou não, admiramos ou não.
Deveria ser engraçado o fato de que algumas pessoas são pagas para ter opinião. Os jornais, revistas e portais de notícias, por exemplo, gostam de manter um time de jornalistas, articulistas, cronistas apenas para ficar ali, opinando. Nem sempre aquelas opiniões são embasadas, nem sempre são, assim, diferentes do que podemos raciocinar sozinhos, nem sempre aquelas opiniões são, assim, exatamente de quem as escreve, ou são, mas por um acaso elas refletem a opinião de seus patrões.
Também deveria ser engraçado que jornais, revistas e portais de notícias paguem para que pessoas com opiniões diferentes das de seus donos sejam publicadas. É que não são apenas as pessoas que pensam como os patrões que consomem informação, então, de um jeito ou de outro, é preciso agradar, para vender, inclusive, opinião. Mas jornais, revistas, emissoras de televisão e portais de notícia criam fama − reacionários, fascistas, comunistas, pervertidos − e, mais do que nunca, têm deitado na cama.
É óbvio que o direito à mudança de opinião é sagrado. E as pessoas podem mudar de opinião para uma outra que lhes seja mais conveniente, mais lucrativa, que soe mais justa. Nada disso deve ser reprovado, pois o pensamento evolui, os pontos de vista são móveis, o lambari é pescado e cada um sabe onde o sapato aperta.
Às vezes é muito difícil separar opinião de dogma ou de profissão de fé. Também é muito comum que  se defenda uma opinião a despeito de tantos fatos que apontem na direção contrária. Na maior parte das vezes, a opinião independe da razão, da verdade, da imparcialidade; a opinião abomina imparcialidades. Em muitos episódios, ela não é fruto de uma busca pela verdade, mas uma tentativa, por vezes desesperada, de estar com a razão, de vencer uma discussão.
De vez em quando, as opiniões publicadas por aí são tecidas por pessoas que realmente têm o que dizer, que estudaram, que raciocinaram, e que colocam a consciência na frente do interesse, a ciência antes do bolso, a verdade acima da ideologia, a fé adiante da conveniência. O problema é que essas pessoas, normalmente, sabem que sempre há espaço para a dúvida, e a opinião, ao menos aquela do senso comum, se não odeia, certamente tende a despeitar a dúvida. É por isso que os mais sábios muitas vezes soam como indecisos e os mais ingênuos têm tanta certeza.
Vivemos a era das certezas e das opiniões definitivas. É por isso que estamos tão perdidos.

Menoridade social


A redução da maioridade penal é um tema apaixonante. Muito difícil entrar em uma discussão com esse assunto sem que ânimos se exaltem. Todo mundo tem muita razão, a ponto de faltar com o respeito com quem pensa diferente. Pois então, eu também tenho as minhas razões.
Em primeiro lugar, é preciso resolver uma questão de base: o que se busca com a redução da maioridade penal: educar e ressocializar, com vistas a reduzir a criminalidade, recuperando os infratores, e assim reduzir o número de vítimas de crimes em geral, ou punir e vingar os crimes já cometidos? São duas coisas diferentes, são duas opções que dizem respeito a como cada um de nós pretende levar a vida, são escolhas que revelam nossas prioridades.
Se as estatísticas que povoam as redes sociais são verdadeiras, como as brilhantemente apresentadas por Eliane Brum, a redução da maioridade penal não terá impacto significativo sobre o montante de crimes praticados, pois a porcentagem de delitos cometidos por menores de idade é muito pequena, praticamente ínfima. E, bem sabemos nós, há uma quantidade significativa de crimes, especialmente de assassinatos, que são atribuídos a jovens menores de idade para livrar os criminosos mais velhos de penas maiores. Todo mundo já reparou que quando um assassinato é cometido por um grupo de delinquentes dentre os quais se encontra um menor, sempre é este que puxa o gatilho, livrando assim a barra de seus comparsas. A redução da maioridade penal, nesses casos, não ajudará a reduzir os crimes, mas fará com que a idade dos que acompanham criminosos para serem responsabilizados no caso de serem pegos diminuirá, passará de dezesseis, dezessete anos para quatorze, doze anos, até que algum jornalista popularesco surja com a genial ideia de reduzir ainda mais a maioridade penal até chegarmos à idade mínima em que uma criança consegue segurar uma arma e efetuar um disparo,  o que pode acontecer antes mesmo de o indivíduo ser plenamente alfabetizado.
Por outro lado, e disso quem trabalha com adolescentes sabe muito bem, faz pouco sentido afirmar que um jovem com dezessete, dezesseis, ou mesmo com quatorze, treze anos, não tem o mínimo de discernimento para compreender o que são crimes, especialmente os mais brutais, como estupros, sequestros e assassinatos. Ainda que não brotem a cada esquina, como alguns políticos e parte da imprensa nos querem fazer crer, há sim assassinos cruéis, assaltantes frios e estupradores sanguinários com menos de dezoito anos. Estes, quando são pegos, passam cerca de três anos em pequenas escolas do crime, como a Fundação Casa, onde não há a mínima condição de serem reeducados, a não ser quando falamos de especializações no próprio mundo do crime. Passar estes adolescentes para presídios com bandidos mais tarimbados e persuasivos não trará benefícios para a sociedade. Se tratar criminosos perigosos com menos de dezoito anos como crianças incapazes e indefesas é nítido sinal de ingenuidade, encarcerá-los ao lado de bandidos mais velhos, experientes e persuasivos é mais um motivo para que a sociedade se sinta insegura, pois esta é a melhor forma de perpetuar as práticas criminosas: distribuindo know-how de geração para geração.
Como cristão, fiz uma opção definitiva pelo perdão e pela reeducação. Luto diariamente para que instintos primitivos como o desejo de vingança pura e simples sejam domados dentro de mim. Sei, contudo, que as penalidades imputadas aos criminosos não são apenas para "reeducá-los", mas também em boa parte para coibir as práticas delinquentes e para punir, sim, os infratores. Tais punições são imputadas aos que têm discernimento suficiente para saber o que podem ou não podem fazer em sociedade. Então, um menor, digamos, de dezesseis anos, que sequestra, estupra e mata alguém, a não ser que sofra de algum mal que o impeça de perceber que estas práticas são hediondas, proibidas em nossa civilização, deve, sim, ser punido. Mas não deve ser inserido em um sistema que além de punir irá lhe propiciar um verdadeiro curso de especialização no crime e nas leis que regem o submundo. Em casos como estes, ao lado da punição, deve haver uma preocupação reforçada, sim, em recuperar o infrator, e isso não apenas para o bem dele, mas da sociedade como um todo.
E é especialmente neste quesito que os governos brasileiros têm fracassado sistematicamente ao longo dos anos. O que deveria funcionar como centro de reabilitação de menores infratores não passa de penitenciária de menores, com direito a doses variadas de violência e ao desenvolvimento de códigos de conduta entre os criminosos desde a mais tenra idade. Nos locais onde o Estado amontoa menores infratores, a primeira lição a ser aprendida é a de que sociedade e governo desprezam quem passa por ali, e que a alternativa mais viável é especializar-se no crime o suficiente para não ser detido outra vez, ou cruel o bastante para sobreviver nas futuras estadias em centros de detenção.
Daí que, se não podemos ser ingênuos o bastante para olharmos para criminosos mirins − sim, eles existem − como simples vítimas de um sistema cruel, também não podemos ser tolos a ponto de acreditar que a redução da maioridade penal nos trará maior segurança: no máximo, saciará parcialmente nossa feroz sede de vingança, o que já agradará a muitos. Contudo, a contraproposta a esta questão não é deixar tudo como está, pois está tudo muito mal. O governo e suas penitenciárias, seja para menores ou para maiores de idade, sustenta o que talvez seja a maior rede pública de escolas do crime do mundo, mantendo presos inclusive pessoas que praticaram delitos, digamos, de "baixo impacto" e que poderiam pagar suas dívidas para com a sociedade de formas alternativas e verdadeiramente socioeducativas; em vez disso, o sistema carcerário brasileiro oferece aos pequenos infratores oportunidades de evolução criminal, fazendo com que um ladrão de margarina possa virar um assaltante de banco, ou um pequeno traficante em dois, três anos de convivência com "profissionais" mais gabaritados.

Discutir a maioridade penal no Brasil vai muito além da questão de encarcerar adolescentes ao lado de bandidos mais velhos, o que já soa como algo grotesco. Passa, repito, por uma questão de base: queremos reconstruir nossa sociedade ou simplesmente nos vingar, de preferência nas camadas menos favorecidas da população? Encarar de fato estas questões pode ser nosso passaporte para a maioridade de nossa sociedade.

Um sonho Criolo


Em 1999 três coisas banais aconteceram. Comecei a trabalhar como professor, fiz amizade com um colega de escola e comprei um CD duplo do Chico Buarque.
Uma quarta coisa também aconteceu: fui ao show As Cidades, do Chico Buarque, duas vezes, uma delas com meu pai. Fiquei anos em pleno devaneio no qual fazia uma turnê com o próprio Chico, cantando músicas minhas e dele. Sim, nos meus devaneios eu sabia tocar violão, era membro de uma banda de rock de sucesso e dava um tempo na carreira do grupo para tocar com meu maestro soberano. Sempre que ouvia aquele CD comprado em 1999 me via no palco ao lado do mestre.
Aquele meu amigo da escola, colega de profissão, também sonhava, tinha seus devaneios. Por coincidência, ele também desejava a música, mais especificamente o rap. Mas, diferentemente de mim, que até hoje não sei fazer um acorde no violão, esse meu amigo batalhou no hip hop como poucos, não desistiu de seus sonhos − embora tenha chegado muito perto disso − e chegou onde eu só conseguiria ir mesmo nos devaneios.
Aquele meu amigo se chamava Kleber, mas hoje é conhecido internacionalmente como Criolo. Quando canta, no Circo Voador, na França, no Lollapalooza ou no Centro Cultural Palhaço Carequinha, no Grajaú, realiza com alegria seu projeto pessoal, mas alimenta os sonhos de muitos de nós das quebradas que ainda lutamos para fazer arte, de qualquer tipo. Desisti cedo da música, embora ainda me imagine, de vez em quando, em algum palco da vida por aí, mas me agarrei às palavras em praticamente todas as suas vertentes estéticas como tábua de salvação, como um meio de compartilhar, celebrar e sangrar a vida. Como eu, há milhares, milhões, que ao ver o sucesso de Racionais e Criolos acreditam que há espaço para nós − e se não houver, sempre pode ser tomado de assalto, com manha, com graça.

Quando soube que Criolo cantaria em um show no Parque do Ibirapuera ao lado de Chico Buarque, celebrando os 70 anos do sambista, não pude deixar de me emocionar e de me sentir devidamente representado. Mesmo sem poder ir ao show, me senti um pouquinho no palco também. Afinal, da ponte pra cá, somos todos criolos, no sonho, na perseverança, na língua que inventamos, no amor que colorimos, na comunhão que dividimos. Evoé axé, amém aleluia!

segunda-feira, abril 06, 2015

O canto da formiga e o engenho da cigarra


Não saberia dizer qual das fábulas de Esopo é a mais famosa. Certamente, a mais criticada nos últimos anos é justamente A cigarra e a formiga. As pessoas reclamam do preconceito de Esopo, e também de La Fontaine, contra as artes e os prazeres da vida.
Apesar de ser alguém apegado às artes e aos prazeres da vida muito mais que ao trabalho, creio que o comportamento da cigarra merece alguma censura, que a formiga tem direito a sua cota de aplausos. Afinal de contas, tudo tem a sua hora, e se a cigarra só pensa em cantar, não reclame das necessidades que passará com a chegada do inverno; quem se prepara com diligência e esforço realmente estará protegido contra infortúnios.
Há também um outro ponto que merece atenção. O canto da cigarra, desde que você não seja uma cigarra fêmea desfrutável, é extremamente desagradável. É incômodo, desafinado. Estridente. "Deselaborado". Previsível. Pobre. Penso nisso enquanto vejo meus alunos desfiando um rosário de seus funks favoritos. Estamos na última semana de aula e os poucos presentes na sala, que não se preocuparam em aprender absolutamente nada ao longo de um ano horroroso como este, agora desfrutam dos últimos momentos na escola neste ano para cantarem pornografia nada ligth. Quando o inverno chegar, estas cigarras tremerão de frio? Ou sequer terão consciência da nevasca que as envolverá, enquanto cantam mais uma vez, brincam mais uma vez, se alienam mais uma vez, consumidas, consumidas, consumidas.
Já as formigas, conscientes de sua própria tristeza, trabalham sem canção ao longe, sem refrigério à vista, esperando, apenas, o inverno. Elas, pelo menos, não incomodam ninguém, e gozarão do fruto de seu esforço. Mas, bem sabemos, viver apenas para fugir do inverno não é desfrutar o melhor da vida. As formigas também precisam aprender a cantar, improvisar, desfrutar. E as cigarras, ah, como seria bom se elas se ocupassem em elaborar um pouco mais seu canto para adornar a vida que explode dentro delas…

quinta-feira, julho 10, 2014

Não doeu


Em 1982, eu tinha seis anos. Lembro de ter ficado muito triste com a derrota − não sei bem se chorei − e de ter saído para o quintal e chutado a vasilha de água do cachorro, no que fui imediatamente repreendido por meu pai, que não teve muito ânimo pra falar muita coisa após aquela partida, e eu também não estava a fim de entender nada, era apenas tristeza, mesmo, uma tristeza de chumbo que parecia sufocar toda a rua, meu mundo à época, e que mais tarde eu saberia que na verdade era uma tristeza de todos os brasileiros, uma tristeza de todos que amam futebol.
Qualquer vídeo, reportagem ou menção àquela seleção me emociona. Sou um homem de muitas lágrimas, mas só porque existe muita beleza e tristeza no mundo; a exemplo do que diz a canção, "não choramos à toa". Em 1986, quando a seleção perdeu, nos pênaltis, para a França, fiquei triste também, mas menos. Havia um tal de Maradona, da Argentina, que estava fazendo por onde levar aquele título. Lembro que na véspera da final uma reportagem exibida na televisão mostrava vários brasileiros que diziam, sem a menor amargura, que torceriam pela seleção alviceleste. E outra, o Brasil andava preocupado com outras coisas, eleições após um longo jejum de democracia, plano cruzado, tínhamos Piquet e Senna já despontava, fora o vôlei, que nossa segunda paixão nacional. A tristeza, além de menor, durava apenas uma noite.
Em 1990, a seleção assumiu ares de quase vexame. A derrota para a Argentina, nas oitavas de final, pelas pernas daquele tal Maradona, não trouxe tristeza, mas raiva. Pela primeira vez fiquei achando que os adversários eram arrogantes e ali nascia, para mim, a rivalidade com os argentinos. Também tive raiva da seleção e de sua comissão técnica, do jogo feio, da briga entre jogadores, CBF e patrocinadores por causa de premiação, e também fiquei com um pouco de raiva do próprio futebol, que se apresentava, naquela Copa realizada na Itália, como uma coisa extremamente chata. E outra: além de Piquet, Senna e do vôlei, eu havia descoberto Oscar, Marcel, Paula e Hortência.
Em 1998, tudo correu bem, a não ser a derrota na final. Ignorei polêmicas e teorias da conspiração. Nem raiva, nem tristeza, apenas um ligeiro mal-estar. Havia Guga, vôlei de praia e Machado de Assis, Graciliano Ramos. Guimarães Rosa, Dalton Trevisan, Manuel Bandeira, todos esses fazendo uma parte essencial da minha vida. Zidane era um artista. Ronaldo era um dos melhores do mundo. Não se pode ganhar sempre.
Em 2006, um caminhão de expectativas que não se consumaram na Copa. Seleção de nariz empinado, craques que não jogavam, panelinhas, tumultos, egoísmo. Pra mim, restou a frustração. Mas do outro lado estava, de novo, mais do que nunca, Zidane. Incomodou, mas até que a seleção mereceu. E eu já conhecia o amor.
Em 2010, parecia que a seleção e sua comissão técnica latiam, rosnavam babando para o próprio país. Reclamavam, tumultuavam, viam fantasmas. Ainda destilavam um rancor plantado lá na Copa de 90 e ainda não totalmente expurgado. Morreram envenenados e não deixaram saudades. A tristeza durou pouco e a Copa, na verdade, foi um pouco chata − não tanto quanto a de 90, é verdade. Aprendi a nadar, me casei, assinei contratos.
Em 2014, queríamos torcer. Tínhamos Neymar e o orgulho ferido por vários motivos extrafutebol. A Copa foi emocionante, alucinante, inesquecível. Diversão garantida a cada jogo. Mordidas, malas de dinheiro, Costa Rica, golaços, goleadas, prorrogações, recordes sendo batidos a cada rodada, a cada partida. A Copa corria divertida, leve e parece que, fora Camarões, talvez a Bósnia, com certeza a Espanha, só o Brasil não se divertia nunca. Carrancudos, hinos cantados aos berros, torcida vaiando os adversários fora de hora, tudo virava produto, tudo ficava automático, quase tudo soava falso.

A tristeza de agora não é equiparável a de qualquer outra copa. Não sentimos a dor de uma apunhalada do destino no coração do futebol arte, como em 1982; não experimentamos o rancor azedo espalhado em 1990; não buscamos nas teorias da conspiração a desculpa esfarrapada para não admitirmos que fomos superados; não estampamos o "benfeito" no canto do lábio celebrando o justo castigo para a seleção pusilânime de 2006; não entramos na pilha revanchista de 2010; agora, a percepção de uma incompetência absurda, o reconhecimento de que estamos muito longe dos grandes centros do futebol mundial, a certeza de que tentaram nos enfiar goela abaixo uma peça publicitária em vez de um time, já nem dói.

sexta-feira, julho 04, 2014

Pátria sem chuteiras


Vamos ser bem sinceros? Caso não jogue uma partida excepcional hoje, contra a Colômbia, esta seleção deixará menos saudades do que a de 90, famigerada ao contrário, só lembrada pelos provocadores argentinos.
Hoje, a disputa começa para o Brasil − e também pode ser que termine. Contra o Chile, vimos um time nervoso, jogando contra si mesmo, intimidado pela presença da própria torcida, com tanto medo de errar que, tirando Hulk, sequer tentava, mesmo, acertar. Se o adversário também não tivesse respeitado em excesso a seleção brasileira, teriam escrito um capítulo da história do futebol chamado de "Mineiraço".
Contra a Colômbia, precisa haver um jogo de futebol, apenas. Neymar estava certo ao dizer que o time precisa jogar como se estivesse brincando com os amigos no quintal de casa. Isso não quer dizer que a seleção deve ser irresponsável do ponto de vista tático, mas que deve jogar leve, se lembrar que não há outras implicações, nada de defender a pátria, nada de ser "brasileiro, com muito orgulho, com muito amor". Futebol, apenas.
A torcida que tem comparecido aos estádios, mal-educada, que trata os adversários como inimigos figadais, que joga sobre a seleção um orgulho e um anseio protofascista de afirmar uma superioridade que, em termos futebolísticos, não pode mais ser revindicada por nenhum país, deve ser ignorada. Esta pensa estar em uma guerra, não se diverte e não apoia o time, pelo contrário: mitificando a seleção como a prova de nossa superioridade, não aceitará nada além da vitória e, como qualquer grupo arrogante e covarde, abandonará os que considerar fracos pelo caminho. A seleção deve jogar para os torcedores que estão fora dos estádios, os que esperam esforço, empenho, vontade, sim, mas sobretudo almejam ver um time que jogue futebol, que busque o gol, que improvise.
Caso queiram entrar para a história de modo positivo, os jogadores deverão, a partir de agora, ir além da garra e fazer partidas convincentes, criar jogadas que entrarão para a história, apresentar algo a mais que cantar o hino como se estivessem saudando algum César no Coliseu.

A Colômbia, nesta Copa, tem jogado melhor, fez mais gols, tem o artilheiro da competição, James Rodriguez, e um jogador habilidoso e incisivo, Cuadrado. O Brasil tem um time que, se decidir jogar, se fizer uma partida muito melhor do que todas as anteriores, pode surpreender. Para tanto, é preciso entrar em campo sem o peso de achar que são a pátria de chuteiras. Há, é claro, uma tradição que precisa ser defendida, mas ela permanecerá para além do resultado do jogo de hoje. Pelé, Garrincha, Ronaldos, Rivaldo, Romário, Zico, Tostão, Falcão, Rivelino, Gerson, Reinaldo não são fantasmas a assombrar a Granja Comary, são vultos históricos, a quem se deve reverência, não o próprio sangue. Se é verdade que os jogadores, hoje, às 17h, estarão  representando um país inteiro, também é verdade que a nossa soberania, nossas vidas, não dependem do resultado contra a Colômbia. É bom que a seleção brasileira saiba que a pátria só usa chuteira nos dias de folga.

quinta-feira, junho 26, 2014

15 livros


Eduardo Bueno é um jornalista que, cerca de quinze anos atrás teve uma óbvia sacada: a celebração dos 500 anos do descobrimento do Brasil poderiam render grandes frutos financeiros para quem se preparasse.
A partir daí, o gaúcho se preparou bem e produziu material sobre a história do Brasil, escrito de modo frugal, para o grande público, e tornou-se naquele tempo uma espécie de especialista leigo em história. Boa parte dos historiadores de ofício torceu o nariz para Bueno, por considerar o trabalho do jornalista superficial, sem o devido rigor acadêmico; mas, creio, sua obra cumpriu seu propósito de informar um pouco e distrair bastante, dentro de uma certa lógica do mercado, demanda e procura etc.
Passada a "sede de saber" nacional sobre o descobrimento, Eduardo Bueno ainda conseguiu algum espaço, que deveria ser ocupado por historiadores de fato, em programas de televisão e páginas da mídia. Por ser expansivo, sorridente, falante e sempre pronto para tirar um sarro de quem estiver por perto e mais ainda de quem não tiver no momento como se defender, muitos o consideram "carismático". Esses quadros e colunas, me parece, deram uma sobrevida ao jornalista, já que não lhe garantiram a mesma notoriedade, tantas vezes confundida com autoridade, dos tempos de 500 anos de descobrimento. Mas o cara, caricato, de vez em quando consegue alguma boca em algum lugar.
Atualmente, Bueno faz parte do programa "Extraordinários", da Sportv, que promete descontração, mas, ao menos nas poucas vezes em que tentei assisti-lo, só entregou edição caótica, direção algo ébria e falta de rumo. Contando com o essencial Xico Sá, "Extraordinários", dedicado a discutir eventos relacionados à Copa tem lá seus admiradores, mas dá alguns tiros na água, como a presença de Maitê Proença.
Pois bem. Eduardo Bueno, em um dos programas, se referiu ao Nordeste brasileiro como "aquela bosta". Logo na sequência, fez questão de informar que se tratava de uma "piada". Foi um duplo carpado sobre a gafe. Como a piada é definida, entre outras coisas, pelo contexto em que é dita e pela quebra da expectativa, pesquisadores do Inmetro não consideraram a fala de Bueno dentro dos padrões de qualidade e segurança.
Chamar algo de "bosta", sem nada que justifique minimamente o uso do termo, não é piada, é grosseria. Em segundo lugar, explicar a suposta piada é chamar seus interlocutores de burros, o que não é um ato de fineza. Bueno, talvez conhecendo a afirmação de Mário de Andrade sobre o conto, que viria a ser, nas palavras do escritor modernista "tudo aquilo que eu quiser chamar de conto", quis fazer crer, como já é prática corrente de alguns humoristas, que "piada é tudo que o [suposto] piadista queira chamar de piada". Não cola, até porque, a justificativa só é feita quando alguém diz algo ofensivo; o humorista nunca se explica pela piada ruim, apenas pela grosseria.
Como a afirmação correu o mundo virtual, Bueno precisou se justificar. Teve como uma de suas defensoras, a atriz Maitê Proença, que, falando da leviandade "dessas pessoas" que postam apenas um trecho de eventos na internet com o intuito de sujar a imagem de alguém, desconsideram o fato de que "o contexto do programa permite" que se refiram ao Nordeste como "aquela bosta". Afinal, é um programa "de humor".
Sendo o humor algo subjetivo, embora não tenha dado uma risada sequer nas vezes em que tentei assisti-lo, admito que há quem ria vendo "Extraordinários"; no entanto, assim como Eduardo Bueno é um falso historiador (nunca o vi se apresentando como tal, mas criou-se a falsa ideia disso) chamar alguém ou alguma região de "bosta" é uma falsa piada, especialmente no contexto em que a expressão foi proferida. Contudo, o mais surpreendente foi o argumento que o próprio Bueno usou para se defender, na verdade, foi um desafio: algum dos nordestinos que o acusaram de preconceituoso já teria lido a quantidade de livros de Câmara Cascudo que ele, o gaúcho Eduardo Bueno, lera? No total, foram quinze!
Foi o triplo carpado na gafe. Não contente em chamar toda uma região do país do que chamou, Bueno ainda insinuou que sabia mais sobre o Nordeste do que qualquer nordestino, pois ele já lera quinze − quinze! − livros de um autor nordestino. Não obstante este argumento quantitativo ser patético, ainda mais para um jornalista que estudou tanto para escrever seus livros de amenidades históricas, fico me perguntando se essa leitura toda lhe credencia a chamar o Nordeste de "bosta", além de insinuar que os nordestinos que se sentiram ofendidos com a "piada" são burros, iletrados, desinformados, ou qualquer outra grosseria, que, a essa altura, já nem faz tanta diferença.
Não creio que Eduardo Bueno pense de fato que o Nordeste é o que ele disse. Pra mim, o cara se empolgou em sua explicação didática e quis dizer algo que soasse engraçado (não uma piada), o que resultou em uma infelicidade. Pedir desculpas e assumir a gafe não o livraria dos raivosos que o perseguiriam pro resto da vida, pois na era do videotape e do Youtube somos vítimas de nossos atos, que jamais se apagam, sendo que antes era apenas a palavra escrita que ficava cristalizada, mas seria sincero e honesto, o que ainda vale alguma coisa. Tentar consertar usando argumentos de autoridade pueris, foi um ato de desespero arrogante, deixando a emenda muito pior que o soneto de pé quebrado que foi a suposta "piada". Em algum livro lido por Bueno, ele deve ter visto algo sobre humildade.


Em torno da Copa


Após uma verdadeira overdose de futebol, e de futebol de ponta, desses que nos lembram por que amamos este esporte, vamos pensar um pouco sobre o que ela traz à tona e que não tem nada a ver com o espetáculo.
A primeira evidência triste, tristíssima, é a ação da polícia com relação às manifestações. Pipocam denúncias de prisões arbitrárias por motivos os mais bizarros possíveis. A polícia anda desrespeitando a lei, com seus agentes desfilando sem identificação; prende quem anda rápido (!), quem fotografa base comunitária estacionada de modo irregular, advogados que acompanham pacificamente manifestações e quem estiver moscando nas manifestações também é um potencial candidato à detenção, sob acusação de baderna, depredação e terrorismo.
Isso da polícia não é qualquer coisa. Não estamos falando de arbitrariedades pensadas e executadas por indivíduos fardados: falamos de práticas organizadas por parte da cúpula da instituição. Então, de certo modo, e este modo não é nada sutil, vivemos oficiosamente um estado de exceção. Ou seja, atualmente, podemos participar de degustações do que viria a ser uma ditadura, basta estar perto de alguma manifestação, e se for contra a Copa, os petiscos são mais bem servidos.
Outra coisa que a Copa tem proporcionado para quem não gosta, ou não tem acesso a ela, é o profundo desprezo misturado à violência que têm sofrido os moradores de rua, especialmente os que transitam em locais estratégicos, como as proximidades de estádios e os centros das cidades sedes. Se os moradores de rua se manifestarem contrariamente à Copa, então, correm o risco de sofrer torturas e sabe-se lá o que mais. Mais uma vez, a polícia tem assumido o protagonismo nessas ações.
Entretanto, não estamos falando exclusivamente de um problema de comportamento da polícia. As emissoras licenciadas da FIFA, que estão fazendo a cobertura da Copa, andam tão empolgadas com os jogos, Neymar, Messi e companhia, que mesmo aquelas que contam com jornalistas menos deslumbrados, ou vendidos, têm deixado de lado toda a questão das manifestações, das prisões arbitrárias, do tratamento dispensado aos moradores de rua e dos diversos desmandos da PM. Maior cobertura jornalística desses eventos não empobreceria o espetáculo futebolístico e talvez servisse para que futuras Copas fossem realizadas de modo mais responsável e humano.
Nas redes sociais, partidários do governo federal têm exaltado a chamada "Copa das Copas". Em campo, é bem possível que isso seja verdade, embora não tenhamos Pelé, Garrincha, Maradona, Puskas, Beckenbauer, Ronaldo ou Romário atuando. Também é verdade que as catástrofes previstas com tamanha precisão e anseio por boa parte da mídia e dos políticos não aconteceu. Mas uma coisa é, tendo rejeitado o Armagedon noticiado e sonhado com antecedência por parte da mídia comprometida com a banda podre da oposição sem projeto, tirar um sarro e cantar vitória; outra é ridicularizar quem, justamente por ter pontos de vista consistentes, insiste nas manifestações, pois aí não se trata de algo circunstancial, e sim de um projeto de país que precisa urgentemente ser discutido pela população. Olhar exclusivamente para a Copa, sem caos aéreo, sem apagões, sem nada que justifique o mantra decantado por tantos anos, "imagina na Copa", é virar as costas para os enormes problemas ainda não resolvidos em solo brasileiro.
Por último, nós, os amantes do futebol, também estamos colaborando para que a Copa esconda nossas verdadeiras questões. Copa do mundo é evento raro, que ocorre a cada quatro anos, e com essa qualidade técnica é algo raríssimo e sem periodicidade definida. Temos enchido nossos olhos de gols, de dribles, de esquemas táticos, de personagens interessantes, da seleção da Bósnia a Suárez, de Cristiano Ronaldo ao time da Costa Rica, e deixamos de lado, em nome de um patriotismo de chuteiras meia boca, os horrores − repito: horrores − perpetrados por governos, policiais e por aquela parcela podremente chique que, mesmo não citada neste texto, incomoda com seus narizes empinados, seus cafetões eletrônicos, seus xingamentos anticívicos e suas frases vazias de significado do tipo "só no Brasil".
Mas cada coisa tem o seu lugar e a sua hora. É possível, sim, a despeito da FIFA, símbolo máximo da banda podre do futebol, nos encantarmos com pedaladas e gols sem perdermos a consciência de classe, de povo, de nação. Em torno da Copa, há um país que precisa ser visto e revisto; não nos esqueçamos disso.


quarta-feira, junho 25, 2014

Enfim, Messi!


É a terceira Copa do craque argentino. Nas duas edições anteriores, em uma ele foi reserva; na outra, era o jogador de confiança do técnico Diego Armando Maradona. Agora, ele é Messi.
O que significa ser Lionel Messi? Ser craque? Cristiano Ronaldo, Neymar, Pirlo, Benzema, Gyan (esse menos, beleza) também são. Significa ser uma indiscutível máquina de fazer gols? Isso é parte de seu talento. Ser um líder silencioso em campo?  Esse é Drogba, que também é craque, não resta dúvida. Ser Messi é algo que vai além disso.
O camisa 10 da Argentina é um caso raro de jogador, de craque: o protagonista sem estrelismo. Nas duas primeiras Copas de que participou, Messi foi um reserva de luxo e um falso protagonista, pois Maradona de técnico, ninguém duvidará disso, concentrou as atenções na seleção dos hermanos. Agora, tendo Sabella como técnico, que passa a maior parte do tempo olhando para o campo com cara de quem tem nojo de futebol, e sem nenhum jogador que chegue ao menos perto de seu talento − Di Maria estava em ótima fase antes da Copa, Agüero é um bom jogador e Higuaín é um Fred bem piorado, os três não chegam perto do que Messi é capaz − a responsabilidade e as atenções ficaram todas sobre o melhor jogador do mundo na atualidade. É disso que ele gosta, é por aí que ele trabalha melhor.
Messi não busca os holofotes, busca apenas a eficiência e os resultados. Não faz questão de aparecer bem penteado no telão, almeja gols e vitórias. Dá a entender que não pensa nem em ser o melhor do mundo, e que isso é pouco mais que um detalhe em sua trajetória. Dá pra perceber fácil a diferença entre ele e Cristiano Ronaldo.
Messi gosta do desafio, empolga-se com a cobrança, sabe que é o protagonista, mas não despreza seus companheiros de equipe. Tímido dentro e fora de campo, Messi não faz firula no meio de campo para ver os flashes espocarem: é sempre objetivo, vertical, e quatro vezes em três jogos (sem ter jogado o tempo todo) foi eficaz.
Nesta Copa, além de deixarem Messi ser Messi, há um outro fator, que deve estar apavorando os técnicos das equipes adversárias. Ele está nitidamente feliz e a fim de jogar. Se um Messi encabulado e sonegador de sorrisos já é quase sempre letal, imaginem um craque risonho, satisfeito com seu rendimento e, mais ainda, com a sua evolução? E o pior é que nós, que amamos futebol, também estamos risonhos com seu futebol; risonhos e amedrontados, é verdade!
Neymar também tem se destacado, e sem jogar ao lado de Di Maria, por exemplo. Também tem quatro gols em três partidas (e sem jogar o tempo todo). Também gosta do protagonismo e do desafio. A diferença é que Neymar está mais próximo de Cristiano Ronaldo no que diz respeito ao apelo midiático, ao gosto pelo flash; diferentemente do craque português, no entanto, o dono da camisa 10 brasileira parece ter o fato de gostar de seus companheiros, de jogar em equipe, e é, sem dúvida, o mais carismático dos três, a despeito da beleza exterior do gajo. Messi fica constrangido com o câmera que o filma de frente, de modo ostensivo; Neymar parece um ator tarimbado diante das câmeras; Cristiano Ronaldo se distrai para observar-se a si mesmo nos telões do estádio.
Nenhum dos três precisou de cartão de visitas nessa Copa. No entanto, ao final dessa primeira fase, Messi, sempre tão discreto, achou por bem se apresentar ao mudo. E enfim, em uma Copa do Mundo, temos Messi.


Bem-vinda, Bósnia


Um time que chegou à Copa gerando alguma expectativa, por ter jogadores como o atacante durão Dzeko, mas que não correspondeu em campo, foi a seleção de Bósnia e Herzegovina.
O que menos importa para esse país, imagino eu, é a classificação na Copa. Claro que seria muito legal chegarem às oitavas ou ainda mais longe na competição, mas, para um país que sempre foi notícia por causa de uma guerra que deixou um saldo de cerca de 220 mil mortos, participar de uma Copa do Mundo já é uma conquista extraordinária.
Bósnia e Herzegovina agora são um país normal. Ou um país em busca de normalidade, pois imagino que a guerra levará algumas gerações para deixar de ser uma sombra pesada, maligna. Uma guerra deixa rastros de ódio. E a Copa, por mais que seja uma competição, que seja palco de revanches e rancores, também é, para quem sabe curtir, uma celebração entre nações, uma festa de torcidas, um encontro de culturas. Mais importante que os gols perdidos e "impedidos" da Bósnia (houve um gol legítimo anulado pela arbitragem no jogo contra a Nigéria) é estar em um evento que não seja negociação de paz, uma tentativa de limpeza étnica, um movimento separatista. Após assumir uma identidade, todo povo quer se integrar ao mundo.
Se o futebol deixou, e muito, a desejar, agora, Bósnia e Herzegovina agora estão integrados à humanidade, pois só é humano quem pode reclamar da arbitragem em uma Copa do mundo, reclamar de um time que não corresponde às expectativas, quem consegue ir além dos conflitos, quem troca as batalhas sangrentas pelos embates esportivos. Bem-vinda, Bósnia e Herzegovina!

terça-feira, junho 24, 2014

Vagabundos e machistas


Antonio Prata, em mais uma crônica magistral, disse que a Copa do Mundo é uma espécie de "salvo conduto para a vagabundagem". As pessoas adoecem estranhamente nas horas do jogos mais importantes, procrastinam compromissos para ver os menos interessantes. Acho que o fenômeno é ainda mais profundo.
Nos lares onde as mulheres não são tão chegadas a futebol, se preocupando apenas com os jogos da seleção brasileira, tenho observado que a Copa do Mundo, especialmente essa, no Brasil, é uma espécie de licença temporária para o machismo. Como todos os jogos viraram promessa de grandes partidas, nós, que amamos futebol e ainda mais Copas do Mundo, nos estampamos no sofá e deixamos tudo que não tenha bola, hinos nacionais e chuteiras coloridas para depois. Como nos imaginamos diante de homens poderosos que decidirão em uma palavra, ou drible, o futuro do universo, e sentimos, com nossas compulsões e superstições, que também participamos diretamente aquilo, nos sentimos muito à vontade para pedirmos uma série de "favores" que, em outros momentos, soarão exagerados, de mau gosto, preguiçosos e, finalmente, machistas.
Um petisco, uma bebida, almoço e janta na mão, na cama, coloca o lixo pra fora, lavar a louça e a roupa e, em casos mais patológicos, até banho de esponja e passar fio dental são solicitações feitas sem a menor cerimônia. Se a esposa ou namorada reclamar, se disser que não vê lógica nesse comportamento patológico, você dirá, com restos de salgadinho e biscoito recheado colados na barba por fazer, que ela "não entende dessas coisas", o que poderá soar, muitas vezes com mundos e fundos de verdade, que esse envolvimento com o futebol é "coisa de homem".
Sim, é verdade que  as coisas vêm mudando muito, que são vários os homens que preferem filmes e livros a futebol, e são várias as mulheres que entendem e praticam o futebol com muito mais amor e conhecimento que qualquer perna de pau barbado. Mas os casais que mantêm um perfil mais clássico sobre o futebol, podem sofrer com machismo enrustido liberado pelo "estado de Copa". Se eu disser que esse machismo ocasional é inofensivo, falo em causa própria e as feministas me odiarão. Se disser que isso é a prova de que estamos em um momento cínico que comprova a manutenção dos maus hábitos machistas, creio que exagero.
Creio haver saídas para a paz familiar. No último domingo, por exemplo, incentivei ardorosamente que meu cônjuge fosse ao show dos Titãs no SESC Interlagos, na companhia da minha distinta cunhada, enquanto eu e o namorado da minha sobrinha nos refestelávamos com um dos jogos mais divertidos da Copa: Argélia e Coreia do Sul. Foram seis gols, algumas belas jogadas. Depois as duas foram felizes e aliviadas por não precisarem ver nem Argélia e Coreia do Sul nem Portugal e Estados Unidos, um jogo cheio de emoções − para quem vê alguma emoção em jogos sem a presença da seleção brasileira.

Hoje, após esse jogo com muita emoção e pouco futebol entre Uruguai e Itália, vou lavar uma locinha, passar o aspirador e fazer um arroz. Quando meu cônjuge chegar do trabalho, vai poder tomar um banho, beber alguma coisa refestelada no sofá e assistir, relaxada e feliz, a algum seriado; ou, como forma de agradecimento, assistir a algumas mesas redondas comigo, afinal os tempos são outros…

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