terça-feira, agosto 19, 2008

Cronistas: Ô Raça!



Amo a crônica de primeira linha, aquela que de tão gostosa nem lemos, abraçamos; ou a outra, que espalha pulgas por nossa nuca. A crônica boa que ágil, efêmera, logo vira clássica literatura. Mas...
O cronista, aquele cara que precisa escrever periodicamente para jornais, revistas ou sites, é, cá entre nós, um grande enganador. Ciente de que é necessário presentear os leitores vorazes com um texto brilhante, lírico, contundente, engraçado, artesanal, filosófico, político, crítico, ácido, fictício, que ilumine o cotidiano, dócil, didático, paradigmático, que fará parte de antologias e coleções escolares, dramático, assinado – o que lhe trás todas as responsabilidades e tira qualquer peso ou culpa do veículo para o qual trabalha – isento, pessoal, poético e higiênico, o cronista é capaz dos maiores besteirismos para manter seu empreguinho, ou seu espacinho na mídia, para vender seus livrinhos, ir a festinhas e assinar contratinhos. E entrar para a historinha, nem que seja a da efemeridade.
Ai, a crônica de jornal vira embrulho; a da revista, bricolagem; nos livros, estocados em bibliotecas úmidas, pasto de traça e fungo; já a cibernética, de um talento virtual, quase sempre sem virtudes, transforma-se em spam, irreciclável, espalhado por escritores que disputam leitor a e-mail.
O que sobra em pirotecnia no cronista, muitas vezes falta em escrúpulos: xingar a mãe do presidente, alardear racismo e mágoa, poetizar a arte de fazer a barba, de chutar pedrinhas e cachorro morto, solenizar o sinal para o ônibus – o amor depois dos cinquenta é como esses ônibus que até param no ponto, mas já vêm carregados de outras pessoas e aromas –, de cortar as unhas – filhos são como unhas: sempre chega a hora de os destacarmos de nós –, sobre o remédio para vermes que seu cachorro está tomando – a Justiça precisa no Congresso o que o Vermifugin fez aos intestinos do Toquinho –, sobre a fila do banco – casamento é como fila de banco: enquanto alguns aguardam ansiosamente para receber alguma coisa, outros chegam ao guichê, ou ao altar, apenas para esvaziar os bolsos – , as vacinas –  as agulhas e os germes vão costurando nossa vida do início ao fim – os botões do elevador – no mundo moderno, somos organizados em números, filas, colunas e linhas, empilhados como caixas, armazenados como latas – , sobre a festa de aniversário do periquito, ou do coleirinha, ou da cotovia, ou do sabiá do vizinho – todo cronista sabe bem os nomes das aves, ai cuitelinho.
Tudo é, ou melhor, precisa ser único e essencial no teclado do cronista, escritor crônico, assalariado ou viciado em holofotes.
Há uma certa classe de cronistas que me aporrinha em especial: os donos da verdade. Aqueles que, devido ao poder que julgam ter com o espaço que arrendaram na mídia, em colunas ou bytes – veem a si mesmos como os grandes sábios da sociedade moderna. Defendem suas ideias – as do patrão? quem disse que não pode existir sinceridade no peleguismo? – com truculência e lealdade. E podem opinar sobre tudo, dando às opiniões pessoais, ou personalizadas, um ar de inconteste verdade.
Há também os cronistas esportivos, ou melhor, futebolísticos, “tribo em frenética proliferação”, como disse Chico Buarque a respeito dos ratos. Hoje em dia todo mundo escreve sobre futebol, discutindo táticas como se fossem generais,  contusões como se fossem Grava e Runco, a melhor angulação do pé ao bater na bola, eles que não são Tostão nem nada. Muitos desses cronistas de carpete não saberiam cobrar um lateral e só jogavam quando eram os donos da bola, o que, aliás, é a verdadeira vocação reprimida deles.
Mas talvez nenhum tipo de cronista seja pior do que aquele que passa a vida a escrever sobre a falta de assunto! As odes e elegias diante da tela em branco, o contorno do tampo da mesa que “o encara, como o guardião dos saberes perpétuos a lhe cobrar palavras e orações", as vírgulas “eternas condenadas a seara quem, aliás, não deveria estar mesmo junto", as orações, que lhes “fogem do pensamento, como aquela prece antiga dos catecismos”, toda essa conversa para boi dormir que tanto preenche lacunas e assassina árvores, quando um texto com essa relevância é, ainda por cima, impresso!
O tempo é sombrio para a crônica. É por isso que eu, grande esteta das palavras que sou, pretendo colocar-me à disposição do povo desse meu país, elucidando suas dúvidas, indicando as veredas mais adequadas para se caminhar, auxiliando no entendimento da economia, da política e do futebol, esse esporte tão popular quanto incompreendido, filosófico. Em meus textos, está claro, nunca faltará assunto, até porque a metalinguagem é minha amiga. E, cá entre nós: leitor de crônicas não passa de um desocupado, mesmo...
PS: Ave, palavras mágicas de Rubem Braga, Luis Fernando Veríssimo, Antônio Maria, Machado de Assis, Sergio Porto, Aldir Blanc, Campos de Carvalho, Milton Hatoum, Drummond, Ivan Angelo, Antonio Prata e outros gênios da lauda. Os ruins, que deixem de cronices.

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