quarta-feira, agosto 27, 2008

O Fogo Amigo de Alessandro Buzzo: Guerreira
(texto escrito em dezembro de 2007)

Acabo de ler Guerreira, de Alessandro Buzo, livro da coleção Literatura Periférica, organizada pela Global Editora. Buzo não é um estreante: faz parte da primeira leva de escritores da periferia que falam da e sobre a periferia, ao lado de Ferréz, Sérgio Vaz e Paulo Lins, num movimento que nasceu espontaneamente e adotou o nome de Literatura Marginal. O autor não concluiu o Ensino Fundamental, como gosta de anunciar, mas sabe escrever muito bem, sim senhor. Não é um aventureiro das letras, como muitos gostam de tratar esses escritores: ao que parece, não escreve apenas por vaidade – todo artista tem vaidade – deslumbramento ou ilusões financeiras. Leva a Literatura a sério e a empunha como arma, denunciando e combatendo com sua arte a injustiça social.
A escrita de Buzzo propõe desafios ao leitor, seja ele da periferia, classe média, intelectual, pouco afeito à leitura... o autor tem preocupações estéticas – não sei se essa é a palavra – bastante delineadas e distantes umas das outras, o que torna o seu trabalho bastante complexo.
Questões complexas, muitas vezes, pedem soluções simples, e a simplicidade pode ser genial ou prosaica. É difícil acertar a dose, ainda mais quando nossas pretensões são elevadas e almejam ao mesmo tempo o pragmatismo um tanto panfletário e o caráter literário que um texto pode proporcionar. Só a prática do escritor, que é feita não apenas da produção, mas também das leituras e experiências que se acumulam ao longo da vida, pode ajudá-lo a superar ou transgredir as barreiras de gênero e de valores estabelecidos pelo universo literário – composto por escritores, leitores, críticos, editores, etc. – proporcionando uma obra que seja sim política, como Buzzo pretende, mas que não abra mão da estética – com certeza, essa é a palavra. Desafio dos mais interessantes, esse, que muitos escritores se dedicam a superar – e que boa parte dos críticos prefere ignorar, seguindo o caminho mais curto do elogio rasgado e pouco consistente ou da crítica superficial e agressiva, principalmente quando falamos de Literatura Marginal Periférica. Aliás, quando surge algo novo, é sempre necessário ter paciência com a crítica, que se move de maneira muito mais lenta que a arte. A Literatura Marginal Periférica (até esse nome precisa mudar) ainda não forjou seus críticos, embora já haja pessoas a estudando nas universidades.
Entre escrever para os moradores da periferia (e aqui há evidente reducionismo do que seria um “morador da periferia”: estereótipo que curte rap, fala gíria etc.?) e apresentar a periferia à classe média e acadêmica (pensando novamente em estereótipos), Buzo fica rigorosamente no meio do caminho: volta-se para seus vizinhos do Itaim Paulista, seus parceiros que moram dos dois lados da Represa Guarapiranga, mas tenta apresentar alguns aspectos da rotina do subúrbio para o público consumidor de livros em geral – o eterno desafio dos escritores de países pobres e pouco escolarizados: escrever o que para quem, mesmo? Falar da própria aldeia, correndo muitas vezes o risco de reforçar e exportar clichês? falar para os pares, forjando uma linguagem que seja antes de mais nada entendida e admirada no próprio berço para depois, se calhar, angariar mais leitores fora dos limites geográficos, no caso, das beiradas urbanas? Buzo almeja os dois públicos – como boa parte de quem escreve: quer leitores – mas quem tenta agradar a todos caminha para o desagrado geral, ou abre mão de maior profundidade em seus trabalhos – isso ainda não aconteceu com ele, bem sabemos, mas é um risco iminente.
Guerreira preocupa-se com a mensagem a ser passada e com os seus leitores distintos com tanto afinco que acaba deixando em segundo plano a estrutura do texto, com a elaboração literária em si. É como se os episódios apresentados fossem tão fortes que seu simples relato bastasse para atingir o leitor da maneira esperada. Porém, com grande receio de não se fazer entender por esse ou aquele, o texto traz explicações/ “traduções” de algumas gírias usadas na periferia, pois o narrador (ou o autor, às vezes é difícil separar um do outro) não se sente plenamente seguro de que seu texto dá ao leitor os subsídios suficientes para se fazer entender. Contar com a preguiça do público e tentar contorná-la é uma das maneiras mais fáceis de empobrecer um texto, pois não permite a este que se defenda, se sustente sozinho, e direciona demais a visão do leitor, atrapalha a reflexão, se aproxima do didático – e a Literatura didática tende a morrer mais cedo.
O excesso de explicações e a ânsia de passar mensagens positivas, da personagem que se dá bem após vários deslizes e desencontros, mas que se redime quando consegue abandonar as drogas – e aqui, curiosamente, “redenção” é sinônimo de dinheiro no bolso e “vida mansa”, não importando de que maneira esse dinheiro tenha chegado a ela – gera um lugar-comum que, esperava-se, fosse evitado e até mesmo criticado por autores que se pretendem “marginais”, colados à “realidade”. A narrativa acaba de certa forma retornando para as fábulas e contos infantis, para as parábolas, ou para o esquema apresentado nas novelas, quando felicidade e realização são sinônimos de riqueza e relacionamento amoroso estável. Roubou, enganou, extorquiu, prostituiu-se e matou, mas livrou-se das drogas? Ótimo, você merece um prêmio. Com esse esquema de sofrimento e redenção pelo amor e pela “tão sonhada independência financeira”, para usarmos o clichê preferido dos jogadores de futebol que vão jogar no exterior, Guerreira reforça uma visão de mundo burguesa, capitalista, que, em princípio, interessa muito pouco aos escritores marginais – aqui, marginal é um termo mais amplo, que pode incluir João Antônio, Fernando Bonassi, Marçal Aquino e toda Geração Mimeógrafo, de Paulo Leminski a Chacal, de Ana Cristina César a Cacaso, assim como Paulo Lins e Sergio Vaz.
Ainda que o autor diga que não pretende deixar uma moral específica em seu texto, alguns elementos podem facilmente desmenti-lo. O primeiro deles é o título: Guerreira indica que teremos uma personagem que luta o tempo todo por uma causa, no caso, a sua própria, e que pelo seu esforço e determinação, em princípio, merece o nosso respeito e até simpatia. A guerreira que conhecemos, no entanto, nem sempre está lutando – muitas vezes está apenas acomodada a uma situação, seja ela confortável ou deprimente – quando decide lutar, sempre pela satisfação pessoal, que ora se reflete nas drogas, ora no sexo e nas drogas, ora na manutenção de um amor puro e ingênuo, ora na ascensão social pelo viés da prostituição ou da chantagem, até chegar finalmente na vida próspera e tranqüila nas praias do Nordeste, ao lado de um rico empresário – que já fora seu amante e patrocinador.
Guerreira, o livro, padece de uma estrutura mais complexa, pois da maneira que foi escrito não conseguiu se livrar de uma série de estereótipos que, acreditamos, o próprio autor gostaria de rejeitar. Sua opção pela periferia, pelos menos afortunados, não deveria permitir que a história ficasse tão repleta de obviedade e com um subtexto que exalta justamente aquilo que deveria combater, a saber, a idéia de que dinheiro e conforto, não importa de onde venham, trazem a felicidade. Isso, para manter a coerência de seu projeto político. Nem o estilo “Robin Hood sexual” salva a nossa guerreira. O fato dela ter tirado dinheiro de ricos via prostituição para fazer o seu pé de meia – e para consumir mais drogas – não faz dela uma heroína, uma vingadora dos menos afortunados. Afinal, ela oferece aos endinheirados aquilo que eles querem receber, e nenhum deles está sendo enganado ou lesado, nem ela usa o dinheiro para fazer alguma bem-feitoria solidária – interessa sempre a satisfação pessoal.
Guerreira luta em causa própria, não ensina nada a ninguém e ainda se dá bem. Normal, já que os escritores ainda têm o direito inalienável de abordar o tema que quiserem, da maneira que acharem melhor. O leitor é que deve estar atento as suas contradições – que nem sempre são charmosas. O que se apresenta como obra popular e engajada pode não passar da decantada “macumba pra turista”, interessada em chamar a atenção de públicos mais “selecionados”.

PS: Na época em que o texto foi escrito, solicitei uma entrevista a Alessandro Buzzo. Quando disse que meu texto cotinha algumas críticas ao seu livro, mesmo ser ler o artigo, ele se recusou a ceder a entrevista, alegando que em outro texto eu falara bem de Marcelo Mirisola (em breve, postarei aqui o texto sobre Mirisola, que pode ter tudo, menos elogios). Decidi não publicar o artigo sobre Guerreira, para evitar constrangimentos, mas, sabendo da importância da crítica (por mais que muitos escritores neguem esse fato) até como fator de aprimoramento estético e de definição do projeto literário de cada autor, aí vai! Espero que ele mude de opinião a meu respeito, não leve nada para o lado pessoal (difícil, eu sei) e que ceda finalmente a entrevista, para ampliarmos o debate que está proposto.

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