sexta-feira, agosto 22, 2008

Seca

Então ficou determinado, por lei federal, que a publicação de livros inéditos ficaria suspensa por dez anos. Além dos livros, qualquer texto inédito, a partir da referida data, que circulasse na internet, em panfletos e revistas (científicas ou literárias), caracterizaria crime contra o patrimônio cultural. Tal lei — que não suspendia, mas limitava a produção de CDs, filmes e peças de teatro — visava ao aprimoramento cultural e intelectual do povo.
Explicando: o universo de obras intelectuais e artísticas do mundo inteiro, atingira, há muito tempo, níveis estratosféricos, impossíveis de serem alcançados por qualquer ser humano, por mais esforçado e erudito que fosse. Ninguém poderia ler tudo na vida; pior: ninguém seria capaz de ler tudo sobre um único assunto, qualquer que fosse. O Romantismo, por exemplo: a cada ano, saem publicações sobre essa manifestação artística e filosófica do século XIX, mas que nos influencia até os dias de hoje e que foi influenciada por outras formas de pensamento que lhe antecederam. Quem conseguirá jamais ler todos os poemas, romances, teses, etc., desse único assunto? Ninguém. Sem contar que, para compreendermos melhor tal movimento, precisamos analisar o que aconteceu após o Romantismo, quem negou, quem imitou, quem desdenhou... também seria necessário analisar a origem e o ocaso desse movimento, e aí seriam mais leituras e pesquisas, intermináveis e entediantes.
Tal excesso de informação poderia inclusive desestimular nossos leitores, professores e pesquisadores, que jamais poderiam abraçar uma especialidade sem se perderem no mar de textos já existentes. Informações demais, incompletas, porém fundamentais; fundamentais, entretanto inúteis, se não vierem acompanhadas de notas de rodapé, e traduções, e explicações, e teoremas. E sempre mais material, sempre mais publicações, sempre mais palpites!
A lei serviria para que o antigos fossem lidos e apreciados com a devida calma e reverência. Sim, as pesquisas ficariam um tanto empacadas, em todas as áreas — das artes à medicina — mas quando fossem retomadas, seriam mais pragmáticas, sem os atropelos e os excessos de outrora.
Para evitar que nossos jovens intelectuais esmoreçam, um prazo de dez anos para conhecerem o que já é fato, seria mais do que suficiente. Importava agora o prático e o clássico, apenas. Inutilia truncat nas universidades e escolas.
A nação assimilou bem a nova lei, sem grandes sobressaltos. No começo, houve um acentuado aumento de público nas bibliotecas, e até algum contrabando de livros nas fronteiras e aeroportos, mas depois a moda passou. Escritores, editores, redatores, foram recolocados no mercado de trabalho por um bem-sucedido programa social do governo: muitos na publicidade, na imprensa e no mercado informal. O Prêmio Jabuti continuou, com algumas modificações: livros agora, só reedições, com um selo de autorização do governo, pois nem tudo que é antigo é válido. Concorria-se apenas em duas categorias: capista e revisor. Finalmente o reconhecimento do revisor!, que com seu mudo trabalho, arredonda o estilo e não acrescenta conceitos. O revisor (o clássico, tradicional, conservador) tornou-se o profissional símbolo dos novos tempos.
As pessoas conversavam, assistiam à muita televisão, dormiam, iam aos estádios de futebol, ouviam músicas, rezavam nas igrejas, aperfeiçoavam-se no comum.
Quando ainda faltavam dois anos para o término da chamada Lei de Fomento ao Saber Estabelecido, por iniciativa popular, houve um plebiscito, em que o povo, alegando falta de tempo para apreciar todas as obras que ainda não puderam ler, pediu prorrogação do prazo por mais quinze anos. Isso foi no tempo em que ainda existiam livros.

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