quarta-feira, fevereiro 16, 2011

O Sol sobre as nuvens

Chegamos em casa sob uma garoa encorpada, daqueles véus de água que nos encharcam até a vesícula. No final de uma ótima tarde de férias, que passamos entre pedaladas, risadas, conversas e sonhos compartilhados, paramos em uma famosa confeitaria do bairro, para sermos abençoados por uma saborosa fatia de bolo – o meu diet e mesmo assim delicioso – e jogarmos conversa fora. O papo passeou entre as expectativas profissionais para o ano que engatinhava e os cálculos do possível orçamento; como sempre, os trabalhos são muitos – ou nenhum, o que é sempre pior – e o dinheiro é curto, mas a vontade de superar alguns limites é sempre, e mais, e adiante.
Nossa parada na confeitaria, além da paixão pelos bolos do Seu Osvaldo, foi por causa das nuvens que já nos seguiam pelas ruas, do chumbo que cobria o céu, anunciando a chuva pesada que já se precipitava e do cansaço físico que as pedaladas nos impõem. Toneladas e quilômetros cúbicos de água despencaram dos sete céus com seu rugido líquido, varrendo as casas dos morros, afogando os carros nas avenidas. Nós dois, por dádiva ou sorte – nunca por mérito próprio – encontramos um abrigo doce e com ar-condicionado.
Ainda assim, em nós havia a tristeza do passeio interrompido bem no meio das férias, na tarde quente que sussurrava convites para flanarmos entre as árvores frondosas do bairro chique aqui pertinho, quase na borda da represa. Na televisão enorme da confeitaria, as imagens “ao vivo” da desgraça inundando a cidade nos aterravam. Em nosso abrigo, percebíamos que o mundo ainda sofre e chora, apesar da alegria que nos abraçava, por conta do casamento ainda fresco, o amor materializado em nossos sorrisos tatuados na cara, o descanso bem-vindo após um ano de mil atividades, mas coroado de alegrias. Gente perdendo casa, famílias inteiras cimentadas sob a lama genocida proporcionada pela indiferença de prefeituras e governos estaduais. Já aguardamos para breve o anúncio de que as áreas afetadas pelas enchentes e deslizamentos estarão isentas do IPTU neste ano – os barracos em áreas impróprias, livres do IPTU, serão agraciados com mais uma boa dose de indiferença. O passeio, encharcado, amarrotou-se.
Voltamos para casa sob a chuva, que já estava menos maligna, mas ainda cortante, em silêncio. Entramos em casa e ela já correu para o banheiro, aquecer e limpar o corpo, talvez livrar-se de uma lama invisível, mas igualmente imunda, a resignação que nos faz baixar a cabeça e diminuir o tom da voz quando vemos uma tragédia, mas que não nos lança a uma atitude mais útil. Enquanto comíamos uma boa fatia de bolo e curtíamos o efeito da endorfina em nossos corpos, gente se afogava, perdia móveis, carros, parentes, a própria vida, a mesma novela reprisada todo verão, nos morros e avenidas pertinho de você, dentro da sua casa.
Mas eis que. Do meio da casa, avisto pela janela da cozinha uma luz intensa, atraente. Era o Sol, em seus últimos brilhos do dia, com muito mais intensidade do que é costume exibir àquela hora. O Sol brilhava sobre as nuvens ainda carregadas, e era impossível, apesar das enchentes e deslizamentos, dos tsunamis artificiais pelas ruas, dos carros e casar submersos, não sentir algo parecido com felicidade, e algo ainda mais abstrato e empolgante: esperança.
Há pequenos prazeres que valem muito, como a risada fácil de quem amamos – e quem eu amo ri com a mesma facilidade que o Ronaldinho Gaúcho faz uma firula inútil em campo – provar um bolo de chocolate tão delicioso quanto dietético – ele existe e está bem pertinho daqui – e um pôr do sol que vence nuvens de chumbo furiosas. Eu gostaria que este mesmo Sol que reforça a minha felicidade, pudesse levar riso e paz à vida dos que se afogam submersos na água suja da indiferença.

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