quinta-feira, março 10, 2011

A mulher dentro da bailarina

Ciranda da bailarina, de Chico Buarque e Edu Lobo, está na estante cerebral de muita gente. De vez em quando citamos seu refrão e a motivação pode ser a inveja de alguma pessoa aparentemente – e irritantemente – perfeita. A canção também é trilha dos pensamentos que temos sobre pessoas que idealizamos, mulheres, quase sempre. A namorada ainda em estado de paixão absoluta, a colega de escola com dentes perfeitos e tímida – a timidez, nas mulheres bonitas, é um bom ingrediente para torná-la uma “bailarina” – a irmã mais velha e bonitona do melhor amigo etc. quando envelhecemos, a filha, a sobrinha, a neta se tornam nossas bailarinas – irmã, especialmente irmã mais velha, nunca será bailarina, que ninguém pode idealizar a irmã, a não ser que ela não conviva conosco regularmente. Todos temos as nossas bailarinas que não têm defeitos e cujas qualidades a adornam de um modo único.
Eu também idealizei muitas mulheres. Professoras atenciosas e pacientes, tias amáveis, paixões platônicas, incluindo as que depois se concretizaram, todas foram, com a convivência, caindo da corda bamba, tropeçando nos próprios dedos, errando os passos da coreografia, despencando do tablado. Mas nada disso era necessariamente ruim: passada a natural frustração, todas as bailarinas se tornam pessoas comuns, frágeis em algum aspecto, fortes em outros e, alternando qualidades e defeitos, passaram a ser mais acessíveis, por vezes até o nível do intragável. O problema da bailarina é que não a alcançamos plenamente, não conseguimos perceber de verdade quem ela é; quando descem da sapatilha, ficam ao alcance da mão, da crítica, da realidade e é exatamente aí que deixam de ser perfeitas. Antes que passemos a amá-las, ao menos algumas delas, como serem mortais, passamos um período de latência, tristeza, desamparo.
A penúltima bailarina da minha vida – ao menos até agora – foi a que hoje é minha esposa. A idealização que eu fazia dela foi motivo de muitos problemas de convivência entre nós, no começo do namoro: suas crises de TPM, suas insatisfações, suas opiniões por vezes tão diferentes das minhas, me assustavam e o quadro que pintei sobre ela e sobre nós dois, com anjos dizendo amém para o nosso amor (argh!!). Ela, definitivamente, não é um anjo, mas uma mulher especial, generosa, bem-humorada, companheira, por vezes irritante e irritável, corintiana e que nem sempre guarda as coisas nos lugares mais tradicionais – sequer costuma se lembrar de onde as guardou. É a pessoa que torna a minha rotina, especialmente nos períodos mais angustiantes, suportável e válida; ainda que não seja a causa, ela é a imagem da minha esperança.
Uma das provas de que a bailarina errou o passo é a aquisição do primeiro namorado. Afinal de contas, segundo Chico e Edu, esse tumor tirado de um maruá é coisa que “só a bailarina que não tem”. Pois a minha única sobrinha está namorando.
Eu aprendi a idealizá-la assim que ela saiu da infância, com todos os dengos e manhas de única sobrinha, única neta, única criança da casa, e passou a ser uma adolescente simpática, bastante tímida e, acima de tudo, esperta e amável. A partir daí, para mim, ficou impossível dar uma bronca, chamar-lhe a atenção por qualquer motivo que fosse; pior: ela não me dava motivo algum para não me orgulhar, para não admirá-la, para sentir um amor de outra modalidade, nobre, doce sem ser melado, juro!
O fato de essa garotinha estar namorando, não muda, não pode mudar o carinho e a admiração que sinto. É a prova irreversível de que ela está em um processo de amadurecimento, de crescimento, como, aliás, acontece com todos os seres vivos e saudáveis. Despertou em mim uma melancolia, um sentimento de perda, que eu não sei até que ponto será real, além de um ciúme e um estranho hábito de manter as facas da casa sempre afiadas entrar para a ONG Animal castrado é animal feliz. Minha sobrinha, que sempre me ensinou porções de coisas – como a não dar bola para o rancor, por exemplo – me faz perceber mais uma vez que amar é acima de tudo não idealizar. Entre bailarinas e mulheres, estas são sempre melhores.

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