quinta-feira, março 03, 2011

Ziraldo, Lobato e o racismo sem ódio

Semana retrasada acompanhei de longe uma polêmica provocada por Ziraldo, que, em defesa de Monteiro Lobato teria dito que “racismo sem ódio não é racismo”.
Gosto muito do Ziraldo, especialmente por conta de seu trabalho com a revista Bundas e no relançamento do jornal Os Pasquim, dois projetos editoriais que, na minha opinião, até que eram bons, mas naufragaram por questões editoriais, mercadológicas ou coisa do tipo. Gostar do Ziraldo, no entanto, não me impede de reconhecer que ele, assim como outras pessoas que admiro muito, como Pelé, que não reconheceu uma filha, Machado de Assis e Lima Barreto, que desprezavam a cultura popular, sendo que este ainda por cima odiava futebol, mesmo defeito de Graciliano Ramos.
Jorge Luis Borges era aristocrata e elitista ao extremo; Caetano Veloso apoiou FHC; Marília Pera e Claudia Raia foram entusiastas de Collor; Hebe Camargo é malufista; Jorge Kajuru é fã de Hebe Camargo; minha esposa (ó, angústia de amar a adversária) é corintiana.
A pequena listinha é para dizer que podemos, e devemos, para o bem da convivência suportável, respeitar, ou amenos suportar, opiniões divergentes e as contradições que cada um traz. Mas a defesa formulada por Ziraldo, seja pela tese descabida do “racismo sem ódio”, seja pela ilustração entre bem-humorada e sexista que o cartunista fez para as camisetas de um bloco carnavalesco do Rio de Janeiro, passou, e muito, de qualquer limite.
Monteiro Lobato é um escritor que, com sua obra para crianças e adolescentes, participou da formação de gerações e gerações de leitores brasileiros. A julgar pela qualidade de nossas elites letradas, já poderíamos olhar para o latifundiário do Sítio do Pica-pau amarelo com desconfiança. Mas ele possui imensa gama de leitores especiais, que lutaram contra a ditadura e mais uma série de problemas sociais como a discriminação contra negros, mulheres, pobres, homossexuais, a favor da educação e da formação de leitores etc. Não vou citar vários deles; basta o próprio Ziraldo, personagem da atual polêmica, e a, acima de qualquer suspeita, Lygia Fagundes Telles, que também tem defendido o empresário de Taubaté.
Que eu saiba, Lygia não é racista; Ziraldo, eu também julgava que não fosse. Li pouco Monteiro Lobato e não gostei muito, em especial por causa de seu texto sobre o Jeca Tatu, que considero recheado de preconceito – eu e Silvio Santiago, salvo engano. Não sou entusiasta da turminha do sítio; minha geração já lia pouco e lidou mais com o Mônica dos quadrinhos e com a Emília da TV. Mas a questão, para mim, é a seguinte: um artista, se for considerado genial – e Lobato é considerado genial e majestoso por muita gente –, pode ter o privilégio de falar, pensar e defender absurdos? Ou, vendo por outro lado: um artista sabidamente criminoso – o racismo é crime inafiançável – déspota, preconceituoso, injusto, monstruoso, deve ter sua obra difundida, admirada e respeitada? Devemos separar autor e obra nestes casos?
A polêmica com Lobato começou quando um órgão federal sugeriu que o livro As caçadas de Pedrinho não fosse adotado nas escolas, por conter passagens racistas. Veio o Ziraldo e tentou transformar racismo em frescura politicamente correta. Eu, que não li o tal livro, pergunto: ele é mesmo racista? E outra pergunta: o livro é, sob o ponto de vista estritamente literário, bom? Tenho ainda outros questionamentos: se o livro é uma obra de arte apreciável – a despeito do racismo que contém – é possível usá-lo para discutirmos o racismo, fato histórico e contemporâneo em nossa história? Vale a pena censurá-lo ou deve-se utilizar As caçadas de Pedrinho de modo reflexivo? Devemos problematizá-lo ou escondê-lo? A partir de qual idade o livro é recomendado? Nesta faixa etária, elas já estão preparadas para fazerem uma leitura crítica do material? Pedrinho e suas caçadas ainda são pertinentes para as crianças de agora? Se o livro é realmente bom do ponto de vista literário, as questões raciais devem ser deixadas de lado? Existem obras racistas cuja qualidade estética “compensam” as ideias que propagam?
Atualmente, discussão semelhante acontece na França, aquele país que lida com conceitos como “limpeza étnica”, que suga e escorraça seus imigrantes, que manteve de forma bem opressora algumas colônias pelo mundo afora. Lá o escritor Celine, sabidamente racista, autor de panfletos antissemistas, é considerado por alguns especialistas o maior escritor francês do século XX. Devem ou não colocar o escritor em evidência? “pegaria mal” exaltar s qualidades de um racista? A obra dele vale o sacrifício? Seus romances são tão racistas quanto seus panfletos e suas ideias nojentas?
A reposta para esses assuntos é difícil. A arte não está acima dos valores que prezamos; na verdade ela é um poderoso meio de difundir nossos ideias; ao mesmo tempo, imbecis podem produzir obras belíssimas, na qual seus defeitos não aparecem. Mas, quando o assunto é arte, literatura em especial, toda opção é política. Hitler, com sua devoção à arte clássica sabia disso; Picasso e seus quadros cubistas também. O ditador nazista ,que dizia buscara beleza, foi responsável por parte das maiores atrocidades contra a humanidade; Picasso denunciou os horrores da guerra. Entre ambos, onde estão Lobato e Ziraldo? Abraçados a alguma ferancesinha?-

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