sexta-feira, setembro 30, 2011

Dois passos adiante

A precisão histórica de Encontro Marcado, de Fernando Sabino

O que tem demais esse tal de Encontro Marcado, que Fernando Sabino escreveu há mais de cinquenta anos? Uma história meio sem história, que vai apenas amontoando episódios na vida de Eduardo, desde a infância e adolescência – eita homem pra falar bem dessas coisas, esse Fernando Sabino! – até a idade adulta – a história não chega à velhice do personagem.
Livro meio de artista para artista sem ser chato, que vai mostrando as inquietações de um menino, jovem, homem, que não se contenta jamais com o mundo ao seu redor e sempre busca alguma coisa, que nunca sabe bem o que é. Nessa busca, Eduardo vai vivendo o que nós, os normais, gostaríamos tanto de fazer, mas não podemos, pois não temos alma de artista – e muitas vezes até artista tem que bater cartão ou assinar ponto. Eduardo ganha prêmios com seus textos, um deles recebido das mãos do ministro da Educação, vira campeão de natação, entra para a cavalaria, faz Direito, escreve para jornais, namora belas moças, tem um amigo de adolescência que se suicida, presencia o suicídio de uma prostituta que se atira da janela de um hotel, namora e casa-se com a filha de um ministro, muda-se de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro, onde vira servidor público e faz parte de uma roda de amigos que levam uma vida mais ou menos igual à dele: grandes expectativas, enormes vaidades, casos amorosos rasteiros, adultérios medíocres, bebedeiras vexatórias e quase nenhuma produção artística ou intelectual relevante, nem ao menos ridícula.
Durante todo esse período, Eduardo sente-se incomodado por não fazer nada que, na opinião dele, faça algum sentido. Considera-se escritor, mas suas criações literárias ficaram para trás, nos tempos da adolescência, e seus artigos escritos para jornais ocupam-se sobre o romance enquanto objeto a ser estudado, de maneira teórica, chata, mesmo, mas não chega nunca a escrever um livro. Entre seus amigos temos poetas – decadentes ou que ficam apenas no campo das promessas que nunca se realizam – pintores – que não alcançam destaque algum com seus quadros – jornalistas que não vão além da bajulação das autoridades ou das críticas incipientes, esperneando feito adolescentes.
Nesse ambiente segue Eduardo Marciano, entre as não realizações: entregue à bebida e à boemia, não consegue manter o próprio casamento de maneira saudável, sua mulher engravida, mas sofre um aborto natural – indicador da esterilidade artística de Marciano? – seus amigos vão gradativamente se afastando, seguindo caminhos distintos, e o garoto ativo e cheio de energia do início da história vai dando lugar a um homem amargurado, que não completa seus projetos, que não faz questão de nada, que, nas palavras de Antonieta, sua esposa, é um “homem torturado”.
O casamento entra em coma profundo, Eduardo é tomado por uma súbita e arrebatadora paixão não correspondida por Gerlaine. A jovem não parece ter grandes interesses nele, além de mantê-lo sob seu domínio por mero capricho. Antonieta, cansada do hábitos do marido, o abandona, não sem antes manter um caso furtivo com um amigo de Eduardo.
O trajeto e as inquietações do protagonista, que ficou ainda mais angustiado após a morte de seu pai, com quem mantinha uma relação bastante forte, são de franca decadência, com alguns poucos pontos de restauração, mas que nunca são plenas. Dentre suas dúvidas, é recorrente o questionamento sobre a existência ou não de Deus, já que, apesar da criação católica, Eduardo nunca esteve certo sobre sua própria fé.
Todas as inquietações de Eduardo formam um belo painel do que foi a geração de Fernando Sabino. Ora, nascidos no período entre duas guerras mundiais, após o surgimento das vanguardas europeias e do modernismo brasileiro, num período de “monoteísmo marxista” entre os intelectuais, todas as certezas cultivadas até então, na arte, na religião e no pensamento em geral, estavam em xeque. A sensação que muitos tinham era a de que algo precisava ser feito urgentemente, que o mundo precisava ser transformado, mas nada gerava uma certeza. Entre a grande ansiedade para realizarem grandes feitos e a dúvida sobre qual rumo tomar, muitos se perderam pelo caminho e foram, lenta e placidamente, sendo absorvidos pela sociedade, pelo sistema, pela inércia. Assim, Eduardo criança, autoritário, precoce e impetuoso, virou um homem fraco, sem iniciativa e consciente de sua inutilidade.
As gerações seguintes criaram a contracultura, o rock, clamaram por reformas, pediram o fim dos conflitos armados, lutaram por um mundo mais justo, solidário e democrático, mas acabaram com o mesmo tom de resignação que Eduardo Marciano. Fernando Sabino não se adiantou nas propostas de mudar o mundo, mas previu o marasmo que sucederiam toda a euforia que viria pela frente. Prever o fracasso da geração que ainda estava por vir, adiantando-se dois passos na História, é coisa que nem os maiores charlatões, sem o menor compromisso com a verdade e com a coerência, costumam fazer. É coisa para poetas, artistas, loucos e gênios, como Eduardo Marciano e Fernando Sabino.
Há um livro, creio, que é um tanto herdeiro de Encontro Marcado, por retratar com a mesma precisão melancólica deste, o desencanto, dessa vez em euforia, de uma geração: chama-se O dia em que o cão morreu, de autoria de Daniel Galera. Assunto para outro texto.

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