segunda-feira, setembro 19, 2011

O escritor, o mercado e a torcida

Um dos Encontros de interrogação de 2011, evento promovido pelo Itaú Cultural com uma série de escritores discutindo “coisas da literatura”, foi dedicado à desbastada, mas pertinente, questão do mercado. Participaram da conversa três prosadores e um poeta, renomados, premiados. Tudo foi bem estranho, pois a sinceridade dos debatedores não impediu um festival de meias verdades.
O poeta Frederico Barbosa (vale ressaltar que as opiniões dos escritores passaram pelo filtro da minha percepção; nada, aqui ou no mundo, é ipsis literis): disse que as editoras são monstros capitalistas que corrompem a literatura, publicam sem critérios, por favores pessoais, amizades venenosas e interesses espúrios. Luiz Ruffato, escritor premiado, curador de editora, organizador de antologias, jurado de concursos, prefaciador, orelheiro, palestrante etc., sempre gostou de dizer que vive da literatura – não de direitos autorais – e falou que adora o capitalismo e a democracia, pois a combinação de ambos permite ao povo ter acesso a bens de consumo, livros inclusive. Ruffato também lembrou – como sempre faz – que sua formação é de torneiro mecânico, filho de analfabeta e semianalfabeto – dessa vez não falou que o pai era pipoqueiro –, que em sua casa não havia livros e que em sua cidade natal apenas a elite tinha acesso a livros. Carola Saavedra, escritora de destaque, ainda jovem, lembrou que a literatura não é uma “arte barata”, pois a formação do escritor, que precede qualquer linha escrita ou pensada, custa caro e “alguém pagou” por isso. Também falou que o fato de começar sua carreira publicando por editora de prestígio não deve causar espécie, pois sua obra foi precedida por muito preparo. Falou ainda do peso das editoras grandes e que é muito fácil publicar hoje em dia: difícil mesmo é ser lido.
Ronaldo Correia de Brito, respeitado escritor refinado e premiado, falou da necessidade de se criar ardis para que a literatura alcance o seu público, e lembrou que é necessário construir canais para o escritor encontrar o seu leitor, e um desses canais – o mais óbvio, pelo menos – é a venda de livros.
Ninguém mentiu e acreditamos na sinceridade de todos. O que foi estranho, então?
Frederico Barbosa condenou ao inferno o escritor profissional, que vive de suas letras, e ignorou que um livro, para ser feito, precisa do trabalho de profissionais. As editoras, monstruosas ou não, precisam lucrar para continuar a produzir, e produzir inclui literatura essencialmente comercial, tsite mas duramente verdadeiro. Além disso, mão de obra especializada precisa ser paga: ilustradores, revisores, diagramadores, editores, o motorista da van, tudo custa dinheiro, não podem trabalhar apenas por amor às letras.
Carola Saavedra, ao afirmar que publicar é fácil, não conseguiu ver muito além de sua freguesia. Há um caminhão de pessoas que ainda convivem com aquelas cartas de rejeição padronizadas das editoras, sem saber se os seus originais foram realmente lidos. Pagar para publicar pode até ser uma alternativa, mas não serve para muita coisa além de reunir os amigos e tirar umas fotos, enfeitar o currículo ou afagar o narciso particular. Por outro lado, publicar por editora de renome para aparecer no jornal e depois ver seus exemplares mofando nos fundos das prateleiras de livrarias, escolas e bibliotecas, aguardando que um dia alguém vá até eles e entenda o sentido da vida, é romântico demais, pragmático de menos e bastante conformista. É preciso encontrar o leitor, mas também é preciso parir o leitor - e eu acho curioso que boa parte dos escritores fale de subsídios, de vendas de livros, mas não fale da formação de leitores, e muitos sequer se interessam pelo assunto.
Ruffato, ao elogiar o capitalismo e a democracia – numa retórica muito semelhante à de empresários da área da comunicação – não levou em conta que publicar, vender, quase sempre para programas governamentais de abastecimento de bibliotecas, ou, para ser preciso, de depósitos de livros embolorados, não significa que o número de leitores está aumentando. Devemos celebrar a liberdade para escrever sobre o que estivermos a fim e com as motivações que escolhermos, seja dinheiro, amor ou besteira, mas o capitalismo por si só não é capaz de agir no âmbito social, tampouco busca a justiça. Mas, na verdade, ao empresário do ramo editorial, abraçado ao capitalismo – nem sempre à democracia – se o dinheiro está entrando, beleza.
Ronaldo Correia de Brito, mais comedido que Ruffato e Barbosa, e menos constrangido que Carola (ou, pelo menos, mais desenvolto diante do público), usou de sua erudição com sabedoria, buscando aplainar os ânimos, mas pareceu não levar muito em conta a questão da formação do leitor. Como é médico, a carapuça do “vendeu-se ao mercado” nem de longe lhe serviu, o que é bom. Mas nem todo escritor teve sua sorte profissional: alguns, ai de nós, só sabem mesmo é escrever ou, pior ainda, lecionar! Aí, ao problema do escritor soma-se a questão da situação dos professores, e, nesse caso, fica difícil seguir escrevendo sem sentir aquele travo amargo entre a língua e o céu de enxofre da boca.
Frederico falou muitas verdades, mas ele próprio é um cidadão que vive da literatura. “Acusar” alguém de tirar seu sustento do meio editorial é estranho e injusto, a não ser que houvesse alguma informação extra na manga que não foi sacada. Também ficou a impressão, ainda que esta não tenha sido proposital, de que todo escritor publicado é um vendido, ou mau-caráter, ou tem uma dívida sexual com alguém. Infelizmente, e ainda não podemos fugir desse fato, publicar é, sim, uma chancela; por uma editora que tenha algum respaldo, mais ainda. Contudo, só a miopia justifica a afirmação de que todo escritor talentoso terá seu espaço no meio editorial. O caminho é tortuoso, complicado, tem, sim uma boa dose de amizade e troca de favor, e furar as relações já estabelecidas é mais difícil do que escrever pentalogias.
Porém, podemos, devemos buscar outros canais de contato com o leitor, e se conseguirmos verdadeiramente romper com o círculo vicioso das editoras, será um brilhante milagre – ou uma verdadeira tragédia, nem dá pra saber ainda. Não basta jogarmos um texto na internet, como é o presente caso, para encontrarmos nossos interlocutores; há uma cruel batalha por espaço tanto na rede quanto nas estantes. O escritor, o poeta, não são seres acima do restante da humanidade, mas têm necessidades especiais: de ócio criativo e de encontrar o seu público.
Debates entre escritores, ainda mais em eventos de expressão, sofrem de um mal endêmico: sempre haverá quem jogue para a torcida, preocupado em agradar a alguém. Tanto é verdade, que o clichê “ninguém pode dizer o que é bom em literatura” foi usado simultaneamente por pessoas que discordavam entre si, querendo, aliás, dizer coisas opostas.
De concreto, por ora, apenas a triste constatação de que algo vai mal, mas há muita gente se dando bem.

Nenhum comentário:

Seguidores