Já passou da hora de grupos cristãos legítimos encararem o
fato de que o nosso maior desafio na atualidade é aprender a lidar com a
homossexualidade sem abrirmos mão da nossa fé.
Para alguns devotos a questão é simples: homossexualismo é
pecado e pronto, quem é gay é merecedor do inferno, está na Bíblia, se o mundo
fosse povoado apenas por homossexuais o planeta estaria deserto em poucas
gerações, bla, blá, blá, pá, pá, pá e té, té, té. Para outros, existe a verdade
bíblica – não textual, mas latente, pulsante – de que Deus ama o pecador, mas
odeia o pecado, transformada em um verniz para encobrir justamente a
intolerância, as fobias sociais – a homofobia e a xenofobia entre elas – e
para, em nome de “Deus e da família”, fingirmos que amamos quem queremos ver longe
e sem direitos. Há pelo menos mais um lado errado, o do encaixotamento de Deus
e dos dogmas cristãos: nesse viés, aquilo que não entendemos ou não aceitamos é
relativizado e transformado em algo mais palatável, afinal de contas, pensam os
encaixotadores, questões de fé precisam ser contidas pela razão e pelo
bom-senso.
Enquanto isso, vamos encontrando entre os cristãos e ditos
cristãos pessoas que arreganham dentes e bíblias e vão se tornando ícones de
intolerância, se especializando em conchavos políticos dos mais mesquinhos e
pecaminosos; vamos alimentando um exército de homossexuais banidos das igrejas
tradicionais, que ora buscam igrejas alternativas que, muitas vezes, apenas
estão explorando um novo filão no mercado da fé, ora caem no mais triste
cinismo com relação ao divino, não sem antes passar por um sofrimento
angustiante, isso quando não permanecem mergulhados nesse sofrimento. Aos que não
ligam para questões religiosas, aos que riem de tudo isso, quando são gays,
dizem que são cínicos, emissários do diabo.
Não tenho a pretensão de indicar um caminho definitivo para
um problema tão complexo como erradicar a homofobia das igrejas sem que
deixemos de lado a nossa fé, e sem buscarmos os caminhos mais fáceis, pois, ao
contrário do que muitos pensam, ao lidarmos com algo sagrado para os cristãos,
como a Bíblia, não faz muito sentido forçarmos uma barra para a adaptarmos ao
nosso momento histórico, às nossas preferências, ao nosso caráter – que sempre é
falho em alguma medida. Ainda que possamos acreditar que a Revelação Divina é
progressiva, não faz sentido supor que ela seja mutante.
É preciso refletir muito sobre o assunto. Mas uma certeza eu
tenho de cara: se a maior parte dos homossexuais olha hoje para as igrejas com
desprezo, raiva ou indiferença; se quando os direitos dos homossexuais são
questionados sempre há pessoas com a bíblia em riste para justificar
injustiças, estamos errando muito. O papo arrogante de que os gays fogem da
igreja porque são pecadores que não querem saber da verdade nem de Deus não me
convence, não convence os gays e não acredito que agrade a Deus. Afinal, os
nossos pecados, ainda que façam separação entre nós e Deus, não foram
suficientes para nos lançarmos para longe de Seus braços. No que o meu pecado é
melhor que o de um homossexual?
Um dia eu tomei uma decisão de andar com Jesus, e isso foi
relevante e decisivo em minha vida, mas, sendo bem honesto, desde a minha
conversão, tenho tropeçado e caído muito mais do que um cristão gosta de
admitir. Suponho não ser o único nessas condições, ou as igrejas estariam bem
mais saudáveis.
Falando exclusivamente com cristãos, pois esse vacilo, essa
bizarrice esquizofrênica com que tratamos os homossexuais é uma exclusividade
nossa também, se cremos na Bíblia como um livro sagrado, inspirado por Deus, a
resposta para lidarmos com a homossexualidade, com a homofobia, sem deixarmos
de praticar um amor acolhedor, e sem abandonarmos a nossa fé, só pode estar
nela.
Muitos de nós, quando lemos a Bíblia, concluímos que a
homossexualidade não agrada a Deus, que é pecado. Esse pensamento é bem mais
complexo do que costumamos admitir. Em primeiro lugar, se a homossexualidade é
uma opção, afirmação com a qual boa parte dos gays discorda, podemos falar
tranquilamente em pecado, mas não podemos exigir de ninguém, por não ser crime,
por não nos atingir ou prejudicar, que deixe de ser homossexual.
Em segundo lugar, no caso de a homossexualidade não ser uma
opção, ma algo intrínseco ao indivíduo, não basta dizer para uma pessoa que
simplesmente deixe de “praticar a homossexualidade”. Ninguém pode me pedir para
deixar de praticar a heterossexualidade, por exemplo. Conhecemos tantas pessoas
que têm dificuldades gigantescas para deixar de fumar, de se drogar, para
abandonar tantas práticas nocivas à saúde física e mental; é possível pedir a
uma pessoa para deixar de ser o que ela é? E a troco de que pedimos, porque exigimos
tal coisa? Para muitos crentes, pastores, televangelistas, parece ser
secundário que um homossexual se converta, se aproxime de Jesus – nosso maior
bem, nossa maior esperança – o que querem mesmo é que eles não tenham direitos,
não apareçam, não sejam gays, ou que sejam escondidos pelos becos escuros das
bordas da cidade.
Contudo, e aqui a porca torce muitas vezes o rabo, os
cristãos que acreditam que a prática homossexual é algo que desagrada a Deus,
não podem ser obrigados a engolir a seco sua crença, sua fé. Não, eles não têm
o menor direito de acusar, xingar, agredir ou incitar o desprezo e a violência
contra qualquer grupo, inclusive o de homossexuais. Não devem, fingindo pregar
a Palavra de Deus, usando covardemente versículos bíblicos para isso, agredir,
condenar e atacar a ninguém, incluindo os gays. Quem achar que homossexualidade
é pecado que comece a amar os gays, entender o que se passa com eles,
respeitá-los e comece a pedir muita sabedoria a Deus para conseguir apresentar
ao seu amado amigo homossexual – amado como deve ser qualquer amigo ou parente
– esse Jesus maravilhoso por quem você diz viver.
Nossa obrigação como cristãos é seguir os passos de nosso
mestre, Jesus Cristo. Pelo que leio nos Evangelhos, Jesus era um homem sábio,
amoroso e carismático, pois todos queriam estar perto dele. Não me lembro de
Jesus sair pelas ruas dirigindo palavras de maldição a grupo algum; na verdade,
termos duros, como “raça de víboras”, “sepulcro caiado” e ações mais viscerais,
como as chicotadas no templo, foram dirigidas a pessoas ligadas à religião,
líderes principalmente, e não a quem mantinha outras crenças, era ateu, ou aos
mais humildes, que também eram explorados e sufocados pelo, digamos, clero. Em
outras palavras, fosse hoje, bispos, cardeais, pastores, “apóstolos”, “levitas”
e outros que tais seriam alvo das chibatadas santas de Jesus e de seus
impropérios judaicos.
Quem precisa provar, demonstrar alguma coisa, somos nós, não
os homossexuais, ateus, simpatizantes etc. Precisamos provar nossa coerência
entre a pregação e a prática, entre o amor da cruz e nossos desejos.
Não tenho resposta, apenas venho pensando e me coçando muito
com esse assunto. Radicais cristãos querem demonizar os gays; radicais gays
querem banir a religião, ou forçá-la a ser algo “politicamente correto” desde
que o politicamente correto exalte o que eu gosto e aniquile o que eu odeio.
Precisamos tomar um rumo, nós, da igreja. Se acreditamos que Deus age ao longo
da História, não podemos perder o bonde.