segunda-feira, dezembro 16, 2013

Natal

Da presepada ao presépio

Natal é irmão gêmeo da guerra
"Gera empregos, aumenta a produção"
É antitrégua
Corrida vazia, altar da mercadoria
Natal é gula e fartura
Sede evidente de cada vez mais gordura
Queima gasolina em uma pressa sem cura
Natal é festa de máscaras e maquiagem
Protocolos de alegrias com data e hora marcada
Concentra nas ceias pílulas de solidão
Natal é festa pagã
Presépios de feltro e fezes
Adornam toda tristeza
"Num mundo de sonho e magia"

Dentro dos corações de luto
Sobre as almas castigadas
No estábulo fedorento
Na manjedoura abandonada
Entre todos os venenos
Onde abunda ou falta dinheiro
Quem sabe onde anda esse Cristo, o menino
O que ele nos dá, entregue, frágil, desde sempre sozinho
Por que veio até nós, nossos próprios deuses
O que fizemos dele, da própria glória o despimos
De onde vem sua fé em nós, pecadores contínuos?

O que faz desse menino o Cristo
É ver em cada um de nós
O bebê da manjedoura, desprotegido
Nu, com frio e sozinho
Visitado por animais
E pastores esquecidos
Ao lado dos pais, igualmente perdidos

O que faz desse menino o Cristo
É derramar sobre a humanidade

Um amor que a tudo torna um pouco divino.

domingo, dezembro 08, 2013

Mandela


A lição que ninguém aprendeu

Talvez surjam pessoas dizendo que Nelson Mandela (1918-2013) não foi nenhum pacifista, que sob seu comando a África do Sul caiu em uma crise econômica profunda, que seu esforço para superar o apartheid não passou de uma estratégia para atrair investidores e nada mais. Lembrarão de seu passado (a partir de agora, tudo que falarem de Mandela será passado?) de guerrilheiro, falarão de sua amizade "suspeita" com Fidel Castro e outros ditadores.
Mas a verdade é que bem antes de morrer Mandela já virara um ícone, uma unanimidade. Mais provável mesmo é que Mandela seja decididamente uma unanimidade e, como acontece com as unanimidades, muitas vezes mal-interpretado.
O maior legado de Mandela, ao seu país e ao mundo, foi a lição suprema do perdão. Lição difícil, aprendida e acalentada durante 27 anos de prisão, sob trabalhos forçados. O maior crime cometido por Mandela, e por tantos outros daquele país, não foram atos de terrorismo, não foi a corrupção, não foi sequestro seguido de morte, tráfico de drogas ou de influência: foi não aceitar um sistema político que separava o povo entre brancos privilegiados e negros excluídos, foi acreditar na igualdade, foi lutar pelos seus pares.
No Brasil, não é fácil para nós entender o que foi o apartheid, pois por aqui o racismo é velado e cínico. Mesmo assim, a imensa maioria vê Mandela como herói. Muitos lamentaram e lamentarão sua morte, no entanto, poucos seguirão seu ensinamento. Perdão é palavra fora de moda, o que é bem compreensível, pois o excesso de impunidade sufoca as possibilidades para o perdão. Quando criminosos e malfeitores riem da nossa cara, falar em perdão vira afronta. O que as pessoas querem, o tempo todo, nas formas mais violentas e degradantes possíveis, é a vingança.
Mas o perdão não é apenas um ato de nobreza e abnegação. Não é um atestado de santidade ou fraqueza. O perdão pode ser uma estratégia política, pode ser um passo importante para uma sociedade construir um futuro mais próspero, livre de revanchismo. Enquanto Mandela buscou o diálogo com quem o prendeu e humilhou, impediu que o rancor se tornasse política de estado, ainda que tivesse todos os motivos para devolver aos defensores e beneficiários do apartheid ao menos um pouco do sofrimento que essa política repugnante impôs à maioria negra sul-africana.

É pena que atualmente, ao menos no Brasil, perdão seja uma ideia sem sentido, é lamentável que após tantos anos de impunidade, perdão seja quase sinônimo de injustiça, e que justiça se confunda com vingança. Mandela entrará para a história como um homem admirável − até quando, não sabemos − mas a sua maior lição ainda não foi aprendida.

terça-feira, novembro 26, 2013

"Branquelo azedo":


A diferença entre racismo e mimimi
A cena mais forte já produzida pelo cinema brasileiro − é bom começar com afirmações definitivas, nos fazem sentir importante e sábio, a despeito de toda nossa ignorância sobre o assunto em questão − está no filme Ó paí, ó, de Monique Gardenberg. Uma das maravilhas da internet, especialmente para escritores preguiçosos, apressados ou incapazes de fazer uma boa descrição − sou muito de tudo isso − é que ela pode nos dispensar do sacrifício e nos permite mostrar direto aquilo de que estamos falando. É disso que estou falando:

A cena emociona pela dissecação do que é racismo de verdade: o fato de alguém julgar a si mesmo superior aos que são diferentes dele, seja pela cor, seja por alguma outra marca étnica, que pode variar de nuances no tom da pele até o tamanho do nariz, a largura da testa etc. Quando o racismo despenca na cabeça de alguém, demonstra-se completamente covarde, por transformar característica em defeito e impedir a vítima de qualquer defesa que não soe ridícula, como as tentativas de clareamento da pele, as técnicas de estiramento de fios capilares, as lentes de contato coloridas: tudo isso, quando feito não por uma simples questão pessoal estética, mas para tentar apagar as marcas de quem a pessoa é −ninguém pode ser definido apenas pela etnia; contudo, renegar a própria origem e herança cultural e genética é um modo triste de autoamputação.
Racismo não é apenas colocar um "apelido" em alguém. É, entre muitas outras coisas, manipular a história e a ciência para rebaixar o outro e dar a si mesmo um lugar de honra. "Explicitar" a inferioridade dos outros é a desculpa quase perfeita para justificar desmandos, injustiças, para "legitimar" genocídios e toda sorte de atrocidade.
Mas é fácil perceber que o racismo é mais eficiente quando a própria vítima do preconceito o introjeta e passa a viver pautado pela própria discriminação que recebe como sendo algo natural. Dá bem mais certo e é bem mais econômico do que a guerra, além de confundir bem mais as pessoas em geral.
Desde criança ouço duas afirmações sobre racismo que sempre considerei, para ser franco, abjetas. A primeira delas acerta na afirmação, mas esconde uma sordidez absurda: "não é só o negro que sofre preconceito". É claro que não é só o negro que sofre preconceito. Mulheres, indígenas, ciganos, evangélicos, judeus, católicos, umbandistas, homossexuais, espíritas, capoeiristas, sambistas, policiais, professores, literatos, mestres de obras, serventes de pedreiro, encanadores, garis, funcionários públicos, nordestinos, gaúchos, imigrantes, brasileiros em geral, analfabetos, pobres etc., todos são vítimas em potencial de ações discriminatórias. Até aí, e daí? O problema é quando a pessoa que traz essa constatação brilhante à tona, a de que não é só o negro que sofre preconceito, usa exemplos que normalmente carecem de reflexão mais profunda.
Acabo de ler, por exemplo, a "observação" de que, se em uma briga de trânsito, um negro for xingado de macaco e retrucar ao seu oponente branco o chamando de "branquelo azedo", os dois incorreram em racismo. É fato que ambos foram grosseiros e que tiveram atitudes reprováveis. É fato que cada um dos agressores, ao se sentir ofendido em sua honra pode buscar, amparado na lei, a reparação que julgar proporcional à injúria sofrida. Mas também é fato que o peso da ofensa é maior na medida em que ela acompanha uma série de práticas históricas na sociedade que discriminam, humilham, e separam as pessoas em "castas". Chamar alguém de macaco, é dar a ele características de um animal irracional incapaz de pensamentos elaborados, muitas vezes dócil e fácil de domesticar. É dizer ao injuriado que ele é inferior e deve se colocar em seu lugar de "quase coisa", é afirmar que o "macaco" em questão até pode ser aceito na sociedade, desde que saiba se comportar, não pretenda estar no mesmo nível dos seres "plenamente humanos" e respeite os "superiores".
Aquilo que parecia ser apenas um "xingamento em momento de fúria", algo grosseiro, mas inocente, revela toda uma visão de mundo compartilhada surdamente por boa parte da sociedade. Já, chamar alguém de "branquelo azedo", é sim, uma grosseria enorme e igualmente imperdoável, mas o peso histórico desse xingamento não envolve escravidão, violência policial, discriminação no mercado de trabalho. O branquelo azedo é menos parado pela polícia, é representado positivamente na mídia, geralmente não é discriminado no mercado de trabalho.
Já vi brancos serem hostilizados em grupos de negros. Já vi, por exemplo, cantores brancos extremamente competentes serem humilhados em corais onde predominavam cantores negros, com piadinhas de péssimo gosto, com o cantor branco sendo ignorado e repreendido a todo instante. Naquele caso, os negros se julgavam superiores ao branco, negando a ele condições de exercer, no caso a sua arte. Já vi nas poucas quadras públicas onde é possível jogar basquete brancos e mestiços "desbotados" − como eu − serem hostilizados e até proibidos de jogar, fora terem de ouvir "gracejos" racistas a todo instante. Foram situações grotescas, absurdas, que merecem repúdio. Mas não podem ser comparadas em alcance e número de ocorrências com o racismo que ocorre contra negros ou qualquer um que não seja branco, ainda que azedo. Não pretendo discutir aqui se a postura dos membros do coral ou dos "basqueteiros" foi uma espécie de resposta histórica às discriminações e abusos contra negros, nem que, sendo eles ainda discriminados em boa parte da sociedade, ali seria um dos poucos ambientes onde seus talentos e culturas poderiam ser devidamente valorizados. Não creio que todos os atos de todas as pessoas são conscientemente políticos, ideológicos ou contestadores; também não credito que o erro de lá é o salvo-conduto de cá: nesses casos, houve sim, a despeito de qual teria sido a intenção dos envolvidos, preconceito racial, que pode ter acarretado problemas emocionais significativos aos que não conseguiram lidar de forma saudável com a discriminação que sofreram. Agora, daí a querer colocar na mesma balança as consequências do racismo histórico e com a conivência de tanta gente importante, com o xingamento covarde feito em uma briga de trânsito já é demais. Querer equiparar a grosseria racista com as discriminações praticadas no trabalho, na mídia, nas escolas é um disparate. Ignorar que durante anos os negros foram retratados ou como escravos, ou como marginais, ou como serviçais, o que só reforça o imaginário popular de que eles são mesmo inferiores do ponto de vista intelectual, fazendo sucesso apenas em áreas restritas da música e dos esportes, é hipocrisia. Rotular o negro que ao se sentir ofendido ou injustiçado de "coitadinho" e "folgado" é vergonhoso.
A segunda afirmação que me causa náuseas é bem menos discreta: "o preconceito começa com o próprio negro; eles têm preconceito entre eles mesmos!". Aqui a hipocrisia é bem menos sutil. É como se dissessem "se os próprios negros se tratam de forma grosseira e racista, por que eu, que nem negro sou, não posso, por exemplo,  contar piadas racistas?".
De fato, conheci mais de uma pessoa negra que tinha opiniões racistas sobre os próprios negros, inclusive na minha família. Mas, em vez de considerar o comportamento dessas pessoas uma prova cabal de que a criminalização do racismo é algo incoerente, vejo com clareza que o pensamento racista que emanou das classes superiores desde, sei lá, Cabral, continua firme e operante. Refletir sobre o que leva uma pessoa negra a discriminar sua própria etnia e origem, ninguém quer, né?
Separar racismo de bulllyng (o que também é um problema gravíssimo e até pode estar misturado com racismo que deve ser combatido com seriedade, mas é outra coisa), ou do mero mimimi de quem não sabe o que é ser constantemente suspeito por causa de sua irremediável cor de pele é algo de grande urgência.

Finalizo lembrando os nomes de dois raps dos anos 90. O primeiro se chama A cor da pele não importa nada feito por artistas brancos que faziam parte do pioneiro movimento hip hop em São Paulo; o segundo, feito pelo rapper negro Dexter, é uma resposta aos realmente bem-intencionados rappers brancos e se chama A cor da pele não importa o caralho

segunda-feira, novembro 25, 2013

A educação caranguejo


O acúmulo de teorias e ideias pedagógicas ao longo de muitos e muitos anos − penso em algo em torno de cinco séculos, mais ou menos − nos faz perceber, neste momento da história, que a educação nunca correu tanto risco de, inexistindo qualquer evolução sensível nas últimas décadas, ir correndo abraçar os retrocessos como se estes fossem a tábua de salvação, se não da educação como um todo, ao menos da paz de espírito − alguns de porco, é bem verdade − do corpo docente e dos governantes em geral − esses suínos por excelência.
Em primeiro lugar, o número de professores que marejam os olhos quando pensam na  repetência é cada vez maior. Já existem inclusive professores que têm saudade de algo que sequer viveram, posto que a aberração da aprovação automática já existe há tempo suficiente para ter ajudado a de-formar muitos mestres da atualidade.
Aliás, é bom frisar: aquilo que muitos chamam de progressão automática jamais foi nada além de aprovação automática. A progressão prevê um novo paradigma de organização das turmas, muito diferente do sistema seriado. Na progressão continuada, a avaliação não é usada para aprovar ou reprovar ao final de cada ano ou ciclo, mas para indicar quais caminhos o aluno deve percorrer. A progressão continuada também prevê um novo modo de organizar os currículos, menos enraizados na questão dos conteúdos e mais voltados às habilidades e competências, palavrinhas bonitas e já esvaziadas de significado, de tão desgastadas e violentadas pelo discurso pedagógico vigente, sem que haja as mínimas condições reais de que habilidades e competências sejam realmente trabalhadas e desenvolvidas.
Vivemos mais do que nunca de arremedos e simulacros, algo tão combatido por Paulo Freire; aliás, muitas críticas do atual "sistema educacional" são atiradas sobre Paulo Freire, sendo que ele, que não vive esses tempos sombrios, já criticava com veemência  o que somos obrigados a assistir hoje, como aparelhamentos, educação bancária, ensino a serviço das elites, falta de reflexão e autocrítica por parte de quem se acredita "de esquerda". Simulamos trabalhar as habilidades dos alunos, mas na verdade esperamos que eles sejam competentes apenas para realizar nossas provas e demais avaliações tradicionais e sem valor fora do ambiente escolar.
Os professores são obrigados a repetir um discurso inovador sobre educação, mas a prefeitura de São Paulo acaba de voltar a tratar provas bimestrais e lição de casa como fetiches e panaceias que, já estamos bem cientes disso, não resolverão aquilo que esperamos que resolvam − vale lembrar que lição de casa e provas já fazem parte da rotina de muitos alunos e professores; eu mesmo trabalho com ambos, sem esquecer de lidar com outros instrumentos de avaliação. A conversão errada nos enfiou a todos na contramão do futuro e do aprendizado com propósitos relevantes.
Tenho a sensação de que todas as teorias sobre educação, ao menos todas as verdadeiramente relevantes, já foram estabelecidas, incorporadas, domesticadas, adoçadas e, de tão distorcidas na prática, viraram nosso terror e amargura. O que conta agora é buscar caminho para efetuá-las de acordo com cada realidade regional, de bairro, de sala, de aluno, até. Levar a realidade local em conta, aliás, já é parte de uma teoria sobre educação. Reprovar, na maioria das vezes, é apenas uma força de coerção e de vingança. "O cara que não fez nada o ano inteiro não pode passar". O que precisamos descobrir é se esse cara aprendeu alguma coisa positiva que lhe será de algum modo útil ou caro ao longo de sua vida.
A briga não deve ser pela reprovação, mas por instrumentos que auxiliem na disciplina e propiciem um ambiente propício para a relação ensino-aprendizagem − que um não existe sem o outro já virou clichê sem ser devidamente problematizado e levado em conta no cotidiano escolar. A prova, mensal, bimestral ou seja lá o que for, é um instrumento de avaliação que já foi demonizado e agora ressurge como uma espécie de redenção; mas se ela não é a vilã do sistema escolar, tampouco pode ser considerada sua redentora. Ela é apenas um instrumento de avaliação que serve em algumas situações e é opressiva ou inútil em outras. A lição de casa pode ser uma necessidade de um determinado contexto pedagógico e pode também não passar de um castigo bobo ou uma espécie de satisfação aos pais que ao verem seus filhos atarantados com cadernos e livros pela casa terão a sensação de que seus filhos estão aprendendo, mesmo que as lições de casa sejam tão trabalhosas quanto burras e sem sentido. Mas, para quem "relançou" a prova bimestral e a lição de casa como propostas pedagógicas, certamente quer lidar mais com as sensações e menos com os problemas de fato.
Por fim, vale ressaltar que educação, sempre e sempre, é um ato político. Política sempre exigirá escolhas, tomadas de decisão e de partido, ainda que rejeitemos os "partidos políticos", que na verdade nem merecem esse nome e deveriam ser chamados de "partidos fisiológicos". Escolher um lado e tomar decisões significa necessariamente que não é possível agradar a todos, ainda que em assuntos públicos, devamos trabalhar para todos. A atual proposta da prefeitura de São Paulo propõe medidas que pretendem agradar a gregos e goianos, mineiros e troianos: por um lado quer mostrar aos professores que com a volta da retenção, da lição de casa, da prova bimestral e do TCC, pretende "disciplinar" os alunos e permitir que os professores possam voltar a lecionar de verdade. Por outro, pretende mostrar aos pais que os professores terão de trabalhar de verdade, como se passar prova e lição de casa fosse sinal de "trabalho verdadeiro" por parte dos professores; alguns dos colegas mais preguiçosos, omissos e acomodados que conheço trabalham justamente em cima da prova e da lição de casa. Enquanto isso, por debaixo dos panos, cria mecanismos para que as retenções não sejam em grande número, querendo vincular os rendimentos do magistério aos números de aprovação.

Não poderia haver conduta mais covarde. Com medo ou vergonha de  assumir que realmente a retenção é um retrocesso, a prefeitura berra que ela voltou, mas vigia e pune o professor que reprovar acima do "esperado". Assim, o governo fica bem com órgãos internacionais ao menos no plano das intenções, embora provavelmente continuará a ostentar níveis vergonhosos em qualquer tipo de avaliação de sistema escolar. Mas condições reais de trabalho para nós, os professores, e criar ambientes verdadeiramente  adequados para o aprendizado, o governo não quer dar, não.

segunda-feira, outubro 14, 2013

15 de outubro


Muita coisa bonitinha pipocará nas redes sociais, muita frase feita será compartilhada e curtida, muita entonação de voz forçada será desengavetada para falar da importância do trabalho do professor. Nenhum aumento digno será proposto, nenhuma política séria será implantada, a jornada de trabalho não passará a ser digna e todos continuarão a olhar para as escolas públicas com o desprezo de sempre.
Muita gente se lembrará de professores competentes, amáveis e comprometidos, mas as lembranças mais divertidas são sobre como professores estressados e mal pagos foram humilhados pelos motivos mais justificáveis, como a vontade de exercer seus ofício com o mínimo de dignidade.
Muitos comemorarão os tiros no assaltante da moto cara sem fazer qualquer tipo de associação entre educação de qualidade e índices de criminalidade.
Quantos olharão para nós com um misto de pena e desprezo, porque ganhamos salários miseráveis e sofremos todo tipo de humilhação possível daqueles que queremos ajudar a educar, porque não fomos suficientemente inteligentes para conseguirmos empregos cuja remuneração é muito maior.
Muitos falarão do imperador do Japão, contarão mentiras singelas sobre os professores do Japão, mas se sentirão espertos por enganarem os professores daqui, por passarem mais um dia pela escola sem nada aprender, e ainda dirão que o governo deveria valorizar o professor.
Muitos resistirão dia após dia, planejando, preparando, elaborando, dando a cara pra bater, suando sangue, chorando abacaxis e ouriços, empenharão a vida em uma causa, amarão sem pieguice, lutarão por uma causa, sentirão medo, terão insônia, ganharão pouco, trabalharão muito e terão em cada segundo de aprendizado verdadeiro aquela alegria que nenhum outro profissional pode ter.

Não queremos parabéns, chocolates ou dias de folga. Queremos nossa dignidade de volta.

terça-feira, outubro 08, 2013

Paulo Coelho: não é só isso


E mais uma vez Paulo Coelho vira notícia. Um dos 70 escolhidos pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil na Feira do livro De Frankfurt, neste ano em que o Brasil será homenageado no principal evento do mercado editorial mundial, o autor com fama de mago declinou do convite para protestar contra a ausência de alguns dos principais campeões brasileiros de tiragens. Nomes André Vianco, Thalita Rebouças e Felipe Neto foram lembrados por Paulo Coelho como exemplo, entre muitos outros, de escritores  que verdadeiramente representam o Brasil, justamente por serem os mais lidos da atualidade.
O raciocínio de Paulo Coelho é bastante lógico e coerente. A própria ministra da cultura, Marta Suplicy, ao ser questionada sobre o número muito pequeno de escritores negros e índios da delegação brasileira, disse que a escolha dos nomes se deu por razões estéticas, não étnicas, e que a Feira do livro de Frankfurt é um evento comercial. Ao tentar separar ética de etnia e acabar embolando arte com mercado, o que a ministra fez foi misturar alhos com bugalhos.
De fato, a Feira do livro de Frankfurt é realmente um enorme balcão de negócios. Sendo assim, importa divulgar produtos que tenham reais condições de alcançar sucesso comercial, e as grandes tiragens desses autores aqui no Brasil e por vezes também no exterior, como é o flagrante caso do próprio Paulo Coelho, não podem ser ignoradas. É uma oportunidade para fazer dinheiro! Frankfurt, para muitos, é a Davos dos livros.
Paulo Coelho, de modo até mesmo um tanto grosseiro, o que, até onde eu saiba, não é comum, o que revelou que o escritor está realmente irritado com a situação, chegou a afirmar que sequer conhecia a maioria dos escritores que estavam presentes na lista. Segundo li em algum lugar, todos os 70 convidados já foram traduzidos para o alemão, o que não deixou de ser um critério, condição básica de qualquer lista − outro quesito obrigatório de qualquer lista desse tipo é a polêmica instaurada logo sua divulgação.
Paulo Coelho talvez esteja um pouco mal informado sobre seus colegas escritores brasileiros, posto que muitos são nomes correntes nas páginas culturais de jornais e revistas, embora boa parte deles mantenha tiragens tão pequenas que chegam a ser ridículas, se comparadas a qualquer escritor que fale de zumbis, anjos, vampiros ou autoajuda. Em todo caso, a desinformação do autor de Diário de um mago vem corroborar o que já percebi há algum tempo: Paulo Coelho não é um leitor ferrenho de literatura, haja vista seus depoimentos autofágicos que costumam falar muito de si mesmo, de seu sucesso, sua grana, as festas que frequenta, as celebridades que leem seus livros etc.
Recentemente, lançou um livro com o mesmo título de um clássico de Jorge Luis Borges, O Aleph, e  escreveu um conto que pretendia dialogar com a obra do magistral escritor argentino. Tratou-se de uma tentativa de aproximação com universo literário que em geral, Paulo Coelho ignora e é ignorado por ele. Todo esforço por parte do mago para conquistar seu lugar, digamos, nas aulas da FFLCH, não pela via comum e obrigatória da leitura dos clássicos, mas por micagens como a que promoveu com Borges, ou pela eleição para a Academia Brasileira de Letras, deram o resultado esperado.
Acredito, sem cinismo algum, que em eventos como a Feira do livro de Frankfurt não se pode ignorar Paulo Coelho, Raphael Draccon, Eduardo Sphor e outros campeões de vendas. Afinal de contas, eles escrevem livros por editoras e têm público: são, portanto, produtores de livros com enorme potencial de mercado, o que serve, inclusive, para manter as editoras abertas e as feiras de livros ao redor do mundo funcionando. Aliás, a academia ganharia muito mais se desse alguma atenção a esses livros do que se insistir em os ignorar. Embora discorde que esses autores formem leitores, pois um leitor "formado", ou em constante formação, é aquele que consegue lidar com diversos gêneros e modalidades literárias, e não o leitor monofônico que busca nos livros um eterno estilo próximo do cinema ou da televisão, ou ler sempre as mesmas histórias com personagens diferentes, ora bruxos, ora anjos, ora vampiros, ora castores…
Por outro lado, quem tem o luxo de viver dos livros, e dos livros literários, não pode, por uma série de motivos, se dar à pobreza de espírito de lidar apenas com livros vendáveis. Em primeiro lugar porque os livros que não vendem aos montes também são formadores de leitores, abrem possibilidades para que pessoas com necessidades estéticas diferentes sejam contempladas − se há quem reclame quando uma determinada marca de iogurte sai de circulação, como desprezar os escritores que vendem pouco? Em segundo lugar porque é nosso dever não nos pautarmos apenas no que o mercado impõe, até porque muito do que é oferecido, bombardeado pelo mercado, seja uma roupa, seja um livro, seja um iogurte, é de qualidade questionável, empobrecedor, de baixo relevo. E feiras como a de Frankfurt podem ser ao mesmo tempo um enorme balcão de negócios e um espaço de resistência, de divulgação cultural, de encontro das diversidades.
Há ainda um outro fator: nem todo sucesso de vendas da atualidade  o será daqui dois anos. De vez em quando as listas dos mais vendidos são preenchidas por três ou quatro escritores, sucessos absolutos que serão plenamente esquecidos pouco tempo depois. Isso é da lógica do mercado, a alta rotatividade de nomes − e perceber que Paulo Coelho consegue se manter há tanto tempo no topo só engrandece o seu trabalho, ao menos do ponto de vista comercial. Por outro lado, há quanto tempo temos leitores que se emocionam com Shakespeare, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Dante, cuja obra recentemente serviu de matéria-prima para um best seller de Dan Brown? Todos esses, e muitos outros, venderam pouco, às vezes foram completamente ignorados em vida, mas fazem parte do patrimônio cultural de um país, do mundo. Claro que o mercado não respeita muito isso de "patrimônio cultural", mas de vez em quando faz muito dinheiro indo beber justamente nessa fonte.
Por último, o que faz sucesso do ponto de vista comercial no Brasil pode naufragar no exterior, especialmente na Alemanha, enquanto o que resiste bravamente por aqui pode vir a ser um sucesso em outros países. Escritores brasileiros que não constam na lista dos best sellers já foram convidados para morar na Alemanha e escrever um livro por lá. Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro e Fernando Bonassi, por exemplo, já foram agraciados com essa bolsa.
Embora a queixa de Paulo Coelho tenha algum sentido, ela foi exagerada e deu o tom de sua visão sobre literatura: um meio de vida, um negócio como outro qualquer. Toda aquela espiritualidade emanada das páginas de seus livros de repente foi substituída por uma coisa chamada disputa por território, briga para abocanhar uma fatia do mercado − e estamos falando de mercado também, ou o evento desencadeador da polêmica não se chamaria feira. Mas literatura, graças a Deus, não é só isso, e sempre é bom poder subverter a lógica do mercado dentro de um ambiente consumista. Foi feio ignorar os grandes vendedores de livros brasileiros, embora Mauricio de Sousa e Ziraldo, por exemplo, além de João Ubaldo Ribeiro, que para o espanto de muitos já vendeu milhões de livros; não doeria ter entre os escritores brasileiros algum autor de best sellers, até porque nem todos que estarão em Frankfurt são escritores exímios, não.

Fico pensando: será que o mago Paulo Coelho não acabou dando esse piti por perceber que não seria reverenciado como acha que merece pelos demais escritores que estarão por lá? Ele é leitor de Thalita Rebouças e Felipe Neto ou queria bancar o Robbin Rood das letras comerciais brasileiras? Especulações…   

Paulo Coelho: não é só isso


E mais uma vez Paulo Coelho vira notícia. Um dos 70 escolhidos pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil na Feira do livro De Frankfurt, neste ano em que o Brasil será homenageado no principal evento do mercado editorial mundial, o autor com fama de mago declinou do convite para protestar contra a ausência de alguns dos principais campeões brasileiros de tiragens. Nomes André Vianco, Thalita Rebouças e Felipe Neto foram lembrados por Paulo Coelho como exemplo, entre muitos outros, de escritores  que verdadeiramente representam o Brasil, justamente por serem os mais lidos da atualidade.
O raciocínio de Paulo Coelho é bastante lógico e coerente. A própria ministra da cultura, Marta Suplicy, ao ser questionada sobre o número muito pequeno de escritores negros e índios da delegação brasileira, disse que a escolha dos nomes se deu por razões estéticas, não étnicas, e que a Feira do livro de Frankfurt é um evento comercial. Ao tentar separar ética de etnia e acabar embolando arte com mercado, o que a ministra fez foi misturar alhos com bugalhos.
De fato, a Feira do livro de Frankfurt é realmente um enorme balcão de negócios. Sendo assim, importa divulgar produtos que tenham reais condições de alcançar sucesso comercial, e as grandes tiragens desses autores aqui no Brasil e por vezes também no exterior, como é o flagrante caso do próprio Paulo Coelho, não podem ser ignoradas. É uma oportunidade para fazer dinheiro! Frankfurt, para muitos, é a Davos dos livros.
Paulo Coelho, de modo até mesmo um tanto grosseiro, o que, até onde eu saiba, não é comum, o que revelou que o escritor está realmente irritado com a situação, chegou a afirmar que sequer conhecia a maioria dos escritores que estavam presentes na lista. Segundo li em algum lugar, todos os 70 convidados já foram traduzidos para o alemão, o que não deixou de ser um critério, condição básica de qualquer lista − outro quesito obrigatório de qualquer lista desse tipo é a polêmica instaurada logo sua divulgação.
Paulo Coelho talvez esteja um pouco mal informado sobre seus colegas escritores brasileiros, posto que muitos são nomes correntes nas páginas culturais de jornais e revistas, embora boa parte deles mantenha tiragens tão pequenas que chegam a ser ridículas, se comparadas a qualquer escritor que fale de zumbis, anjos, vampiros ou autoajuda. Em todo caso, a desinformação do autor de Diário de um mago vem corroborar o que já percebi há algum tempo: Paulo Coelho não é um leitor ferrenho de literatura, haja vista seus depoimentos autofágicos que costumam falar muito de si mesmo, de seu sucesso, sua grana, as festas que frequenta, as celebridades que leem seus livros etc.
Recentemente, lançou um livro com o mesmo título de um clássico de Jorge Luis Borges, O Aleph, e  escreveu um conto que pretendia dialogar com a obra do magistral escritor argentino. Tratou-se de uma tentativa de aproximação com universo literário que em geral, Paulo Coelho ignora e é ignorado por ele. Todo esforço por parte do mago para conquistar seu lugar, digamos, nas aulas da FFLCH, não pela via comum e obrigatória da leitura dos clássicos, mas por micagens como a que promoveu com Borges, ou pela eleição para a Academia Brasileira de Letras, deram o resultado esperado.
Acredito, sem cinismo algum, que em eventos como a Feira do livro de Frankfurt não se pode ignorar Paulo Coelho, Raphael Draccon, Eduardo Sphor e outros campeões de vendas. Afinal de contas, eles escrevem livros por editoras e têm público: são, portanto, produtores de livros com enorme potencial de mercado, o que serve, inclusive, para manter as editoras abertas e as feiras de livros ao redor do mundo funcionando. Aliás, a academia ganharia muito mais se desse alguma atenção a esses livros do que se insistir em os ignorar. Embora discorde que esses autores formem leitores, pois um leitor "formado", ou em constante formação, é aquele que consegue lidar com diversos gêneros e modalidades literárias, e não o leitor monofônico que busca nos livros um eterno estilo próximo do cinema ou da televisão, ou ler sempre as mesmas histórias com personagens diferentes, ora bruxos, ora anjos, ora vampiros, ora castores…
Por outro lado, quem tem o luxo de viver dos livros, e dos livros literários, não pode, por uma série de motivos, se dar à pobreza de espírito de lidar apenas com livros vendáveis. Em primeiro lugar porque os livros que não vendem aos montes também são formadores de leitores, abrem possibilidades para que pessoas com necessidades estéticas diferentes sejam contempladas − se há quem reclame quando uma determinada marca de iogurte sai de circulação, como desprezar os escritores que vendem pouco? Em segundo lugar porque é nosso dever não nos pautarmos apenas no que o mercado impõe, até porque muito do que é oferecido, bombardeado pelo mercado, seja uma roupa, seja um livro, seja um iogurte, é de qualidade questionável, empobrecedor, de baixo relevo. E feiras como a de Frankfurt podem ser ao mesmo tempo um enorme balcão de negócios e um espaço de resistência, de divulgação cultural, de encontro das diversidades.
Há ainda um outro fator: nem todo sucesso de vendas da atualidade  o será daqui dois anos. De vez em quando as listas dos mais vendidos são preenchidas por três ou quatro escritores, sucessos absolutos que serão plenamente esquecidos pouco tempo depois. Isso é da lógica do mercado, a alta rotatividade de nomes − e perceber que Paulo Coelho consegue se manter há tanto tempo no topo só engrandece o seu trabalho, ao menos do ponto de vista comercial. Por outro lado, há quanto tempo temos leitores que se emocionam com Shakespeare, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Dante, cuja obra recentemente serviu de matéria-prima para um best seller de Dan Brown? Todos esses, e muitos outros, venderam pouco, às vezes foram completamente ignorados em vida, mas fazem parte do patrimônio cultural de um país, do mundo. Claro que o mercado não respeita muito isso de "patrimônio cultural", mas de vez em quando faz muito dinheiro indo beber justamente nessa fonte.
Por último, o que faz sucesso do ponto de vista comercial no Brasil pode naufragar no exterior, especialmente na Alemanha, enquanto o que resiste bravamente por aqui pode vir a ser um sucesso em outros países. Escritores brasileiros que não constam na lista dos best sellers já foram convidados para morar na Alemanha e escrever um livro por lá. Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro e Fernando Bonassi, por exemplo, já foram agraciados com essa bolsa.
Embora a queixa de Paulo Coelho tenha algum sentido, ela foi exagerada e deu o tom de sua visão sobre literatura: um meio de vida, um negócio como outro qualquer. Toda aquela espiritualidade emanada das páginas de seus livros de repente foi substituída por uma coisa chamada disputa por território, briga para abocanhar uma fatia do mercado − e estamos falando de mercado também, ou o evento desencadeador da polêmica não se chamaria feira. Mas literatura, graças a Deus, não é só isso, e sempre é bom poder subverter a lógica do mercado dentro de um ambiente consumista. Foi feio ignorar os grandes vendedores de livros brasileiros, embora Mauricio de Sousa e Ziraldo, por exemplo, além de João Ubaldo Ribeiro, que para o espanto de muitos já vendeu milhões de livros; não doeria ter entre os escritores brasileiros algum autor de best sellers, até porque nem todos que estarão em Frankfurt são escritores exímios, não.

Fico pensando: será que o mago Paulo Coelho não acabou dando esse piti por perceber que não seria reverenciado como acha que merece pelos demais escritores que estarão por lá? Ele é leitor de Thalita Rebouças e Felipe Neto ou queria bancar o Robbin Rood das letras comerciais brasileiras? Especulações…   

Paulo Coelho: não é só isso


E mais uma vez Paulo Coelho vira notícia. Um dos 70 escolhidos pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil na Feira do livro De Frankfurt, neste ano em que o Brasil será homenageado no principal evento do mercado editorial mundial, o autor com fama de mago declinou do convite para protestar contra a ausência de alguns dos principais campeões brasileiros de tiragens. Nomes André Vianco, Thalita Rebouças e Felipe Neto foram lembrados por Paulo Coelho como exemplo, entre muitos outros, de escritores  que verdadeiramente representam o Brasil, justamente por serem os mais lidos da atualidade.
O raciocínio de Paulo Coelho é bastante lógico e coerente. A própria ministra da cultura, Marta Suplicy, ao ser questionada sobre o número muito pequeno de escritores negros e índios da delegação brasileira, disse que a escolha dos nomes se deu por razões estéticas, não étnicas, e que a Feira do livro de Frankfurt é um evento comercial. Ao tentar separar ética de etnia e acabar embolando arte com mercado, o que a ministra fez foi misturar alhos com bugalhos.
De fato, a Feira do livro de Frankfurt é realmente um enorme balcão de negócios. Sendo assim, importa divulgar produtos que tenham reais condições de alcançar sucesso comercial, e as grandes tiragens desses autores aqui no Brasil e por vezes também no exterior, como é o flagrante caso do próprio Paulo Coelho, não podem ser ignoradas. É uma oportunidade para fazer dinheiro! Frankfurt, para muitos, é a Davos dos livros.
Paulo Coelho, de modo até mesmo um tanto grosseiro, o que, até onde eu saiba, não é comum, o que revelou que o escritor está realmente irritado com a situação, chegou a afirmar que sequer conhecia a maioria dos escritores que estavam presentes na lista. Segundo li em algum lugar, todos os 70 convidados já foram traduzidos para o alemão, o que não deixou de ser um critério, condição básica de qualquer lista − outro quesito obrigatório de qualquer lista desse tipo é a polêmica instaurada logo sua divulgação.
Paulo Coelho talvez esteja um pouco mal informado sobre seus colegas escritores brasileiros, posto que muitos são nomes correntes nas páginas culturais de jornais e revistas, embora boa parte deles mantenha tiragens tão pequenas que chegam a ser ridículas, se comparadas a qualquer escritor que fale de zumbis, anjos, vampiros ou autoajuda. Em todo caso, a desinformação do autor de Diário de um mago vem corroborar o que já percebi há algum tempo: Paulo Coelho não é um leitor ferrenho de literatura, haja vista seus depoimentos autofágicos que costumam falar muito de si mesmo, de seu sucesso, sua grana, as festas que frequenta, as celebridades que leem seus livros etc.
Recentemente, lançou um livro com o mesmo título de um clássico de Jorge Luis Borges, O Aleph, e  escreveu um conto que pretendia dialogar com a obra do magistral escritor argentino. Tratou-se de uma tentativa de aproximação com universo literário que em geral, Paulo Coelho ignora e é ignorado por ele. Todo esforço por parte do mago para conquistar seu lugar, digamos, nas aulas da FFLCH, não pela via comum e obrigatória da leitura dos clássicos, mas por micagens como a que promoveu com Borges, ou pela eleição para a Academia Brasileira de Letras, deram o resultado esperado.
Acredito, sem cinismo algum, que em eventos como a Feira do livro de Frankfurt não se pode ignorar Paulo Coelho, Raphael Draccon, Eduardo Sphor e outros campeões de vendas. Afinal de contas, eles escrevem livros por editoras e têm público: são, portanto, produtores de livros com enorme potencial de mercado, o que serve, inclusive, para manter as editoras abertas e as feiras de livros ao redor do mundo funcionando. Aliás, a academia ganharia muito mais se desse alguma atenção a esses livros do que se insistir em os ignorar. Embora discorde que esses autores formem leitores, pois um leitor "formado", ou em constante formação, é aquele que consegue lidar com diversos gêneros e modalidades literárias, e não o leitor monofônico que busca nos livros um eterno estilo próximo do cinema ou da televisão, ou ler sempre as mesmas histórias com personagens diferentes, ora bruxos, ora anjos, ora vampiros, ora castores…
Por outro lado, quem tem o luxo de viver dos livros, e dos livros literários, não pode, por uma série de motivos, se dar à pobreza de espírito de lidar apenas com livros vendáveis. Em primeiro lugar porque os livros que não vendem aos montes também são formadores de leitores, abrem possibilidades para que pessoas com necessidades estéticas diferentes sejam contempladas − se há quem reclame quando uma determinada marca de iogurte sai de circulação, como desprezar os escritores que vendem pouco? Em segundo lugar porque é nosso dever não nos pautarmos apenas no que o mercado impõe, até porque muito do que é oferecido, bombardeado pelo mercado, seja uma roupa, seja um livro, seja um iogurte, é de qualidade questionável, empobrecedor, de baixo relevo. E feiras como a de Frankfurt podem ser ao mesmo tempo um enorme balcão de negócios e um espaço de resistência, de divulgação cultural, de encontro das diversidades.
Há ainda um outro fator: nem todo sucesso de vendas da atualidade  o será daqui dois anos. De vez em quando as listas dos mais vendidos são preenchidas por três ou quatro escritores, sucessos absolutos que serão plenamente esquecidos pouco tempo depois. Isso é da lógica do mercado, a alta rotatividade de nomes − e perceber que Paulo Coelho consegue se manter há tanto tempo no topo só engrandece o seu trabalho, ao menos do ponto de vista comercial. Por outro lado, há quanto tempo temos leitores que se emocionam com Shakespeare, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Dante, cuja obra recentemente serviu de matéria-prima para um best seller de Dan Brown? Todos esses, e muitos outros, venderam pouco, às vezes foram completamente ignorados em vida, mas fazem parte do patrimônio cultural de um país, do mundo. Claro que o mercado não respeita muito isso de "patrimônio cultural", mas de vez em quando faz muito dinheiro indo beber justamente nessa fonte.
Por último, o que faz sucesso do ponto de vista comercial no Brasil pode naufragar no exterior, especialmente na Alemanha, enquanto o que resiste bravamente por aqui pode vir a ser um sucesso em outros países. Escritores brasileiros que não constam na lista dos best sellers já foram convidados para morar na Alemanha e escrever um livro por lá. Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro e Fernando Bonassi, por exemplo, já foram agraciados com essa bolsa.
Embora a queixa de Paulo Coelho tenha algum sentido, ela foi exagerada e deu o tom de sua visão sobre literatura: um meio de vida, um negócio como outro qualquer. Toda aquela espiritualidade emanada das páginas de seus livros de repente foi substituída por uma coisa chamada disputa por território, briga para abocanhar uma fatia do mercado − e estamos falando de mercado também, ou o evento desencadeador da polêmica não se chamaria feira. Mas literatura, graças a Deus, não é só isso, e sempre é bom poder subverter a lógica do mercado dentro de um ambiente consumista. Foi feio ignorar os grandes vendedores de livros brasileiros, embora Mauricio de Sousa e Ziraldo, por exemplo, além de João Ubaldo Ribeiro, que para o espanto de muitos já vendeu milhões de livros; não doeria ter entre os escritores brasileiros algum autor de best sellers, até porque nem todos que estarão em Frankfurt são escritores exímios, não.

Fico pensando: será que o mago Paulo Coelho não acabou dando esse piti por perceber que não seria reverenciado como acha que merece pelos demais escritores que estarão por lá? Ele é leitor de Thalita Rebouças e Felipe Neto ou queria bancar o Robbin Rood das letras comerciais brasileiras? Especulações…   

terça-feira, outubro 01, 2013

Mudar de nome não vai adiantar



Não precisamos dizer que o senso comum traz alguns problemas significativos − isso também é um grande senso comum. Também não afirmaremos que o senso comum não é um mal em si mesmo e que ele tem sua função no pensamento humano − todos percebemos isso com facilidade. A questão é saber o lugar e a utilidade de cada coisa.
Desde quando me converti ao protestantismo ouço falar que o grande mal das religiões é a religião. Tá legal, não exatamente com essas palavras, mas, sem perceber, dizem exatamente isso. Entre as igrejas cristãs essa fala é muito comum. Demonizam o que chamam de religiosidade como se ela fosse o maior mal sobre a Terra. Sacralizam e dessacralizam coisas, hábitos, lugares, promovem uma verdadeira dança das cadeiras com relação a tudo que nos remete ao divino, com tudo que faz parte do âmbito religioso. Falar mal da religião virou o maior clichê inclusive entre os religiosos que têm vergonha de sê-lo.
Essa confusão, essa resistência em chamar qualquer prática religiosa de religiosa (eita ferro!) é bem comum entre os cristãos. Nas universidades, nos espaços acadêmicos, essa frescura não existe. Tudo que busca manter contato, entender, apreender aquilo que não está neste mundo real (no sentido de existir de fato, mais no sentido platônico, em oposição ao mundo ideal), concreto, visível, tangível, esquadrinhável, é chamado de religioso. Temos a filosofia da religião, as ciências da religião, a teologia entre elas, e tudo funciona sem crise, resistência, recusa. Só os religiosos não gostam do termo religião.
Isso acontece devido a vários fatores, desde a vergonha intelectual por fazer parte de algo que nem sempre é considerado sério e respeitável no meio acadêmico, seja por não querer ser comparado aos religiosos mais ingênuos e rústicos, ou aos mais nítidos estelionatários da fé que grassam em todo o Ocidente e ao menos em boa parte do Oriente também. Em muitos ambientes, a religião é o espaço dos tolos, dos menos privilegiados do ponto de vista intelectual, dos que aderem facilmente ao comportamento de rebanho. Ninguém que almeje o respeito acadêmico quer fazer parte de um rebanho.
Também existe, dentro de ambientes religiosos, os que afirmam não ser religiosos por identificarem neste contexto a repetição exaustiva de rituais, de práticas mecânicas que nada teriam a ver com o relacionamento direto e verdadeiro com o divino, com Deus propriamente dito. Esses acreditam não estar dentro de um contexto religioso porque, pensam, com eles a relação com o divino é tão genuína, tão intensa, tão corriqueira, tão honesta, tão cerebral, que não precisam de nenhum tipo de ritual, de nenhuma prática mecânica para se integrarem com Deus, que não está distante, mas bem aqui pertinho.
São estes dois modos de lidar com a religião fingindo que não. No segundo caso, muitos são os picaretas que fazem uso desse discurso, especialmente no meio evangélico, para poderem se separar das "outras religiões", especialmente do catolicismo, tão cheio de rituais e mediações. O curioso dessa visão de mundo é que justamente estes que tanto criticam a religiosidade que veem nos sacramentos, missas e feriados, práticas milenares da igreja católica, não passam muito tempo sem inventar os seus rituais pessoais, de acordo com seus interesses do momento. Multiplicam-se as fogueiras santas, os cultos de milagres, os jejuns da vitória, os cultos de libertação, as orações nos montes, os sete passos para o êxtase cósmico de Israel, a toalhinha suada de Emaús, o tijolinho da muralha de Jericó, o cheque voador da promessa, ou o cheque da promessa voadora… Para se libertarem da religiosidade e seus rituais, criam uma série de novos, ou melhor, de requentados expedientes religiosos, cada vez mais esdrúxulos.
Já no primeiro caso, a coisa assume uma complexidade maior, complexidade que nem sei se consigo desenvolver aqui com a clareza e competência necessárias. Mas ao menos um ponto me parece ser bem claro: há um grupo de religiosos que, consciente do preconceito que a religião sofre nos ambientes intelectuais, como por exemplo nas universidades e entre artistas, simplesmente prefere não receber o carimbo de "religioso", o que de imediato lhe traria a pecha de pouco inteligente, ingênuo, desinformado, alheio à ciência etc.
Esse grupo, que não enfrenta essa situação sem passar por uma crise, luta contra uma série de paradigmas e tenta agrupar em um mesmo balaio esferas da vida humana que ao longo da história se tornaram inconciliáveis. Se houve um tempo em que a ciência era desenvolvida e estimulada dentro da igreja, chegou um momento em que, para manter sua independência e seguir sua trajetória mais ou menos livre de intervenções e ideias pré-concebidas, a ciência em geral precisou romper com a tradição religiosa, o que, a meu ver, só fez bem a cientistas e religiosos.
Porém, ainda hoje há quem busque na ciência, digamos laica, pontos de apoio que sustentem a sua fé, ou que pretendem lidar com a teologia não como um recurso para lidar e entender um determinado tipo de fé, mas como se teologia fosse um mero ramo da filosofia − o que até pode ser verdade para os que não têm fé e se ocupam da teologia como um objeto de pesquisa. Todo esse esforço, me parece, tem o propósito de não ser confundido com os místicos desenfreados, ou com os estelionatários da fé. Barateiam a tradição e tentam romper com os rituais − acredito que não existe religião sem seus rituais e dogmas −, além de questionar praticamente tudo que faz parte da religião, pois se não são pessoas religiosas, não podem manter práticas religiosas.
Contudo, não há nada mais religioso do que o desejo de se comunicar com Deus, não há nada mais religioso do que acreditar em algo cuja existência e verossimilhança não se podem provar. Pecado, necessidade de redenção e justificação, crer na vida após a morte de modo a transformar a vida antes da morte, tudo isso não pode deixar de ser visto como práticas religiosas, porque o são. Encontrar novos nomes e mesmo novos meios de lidar com o divino não vai transformar a religião em outra coisa.
Sendo assim, o sacerdote que afirma deixar de ser evangélico para pregar o Evangelho para os evangélicos não vai além de um simples jogo de palavras, jogo, aliás, de pouco efeito prático. Evangélico, na essência do termo, é quem tem a preocupação de evangelizar. Cristão é quem segue a Cristo, suas ideias, seus mandamentos, além de crer na própria divindade do Messias. Evangélico não é, nunca foi, embora haja muita confusão, quem frequenta ou é membro de uma igreja que se apresenta como evangélica. Religioso não é apenas quem pratica uma série de rituais esvaziados de significado; este, no máximo, será um mau religioso, sem compreender o que está fazendo e, consequentemente, sem alcançar aquilo que tanto deseja.
Em vez de se preocupar em não ser identificado com esse ou aquele grupo, de se empenhar em fazer com que suas práticas religiosas sejam prestigiadas entre cientistas, por exemplo, vale mais o empenho em ser religioso e evangélico por inteiro, na essência que essas palavras carregam em si. Afinal, para quem acredita na mensagem de Cristo, os homens seguem precisando ser religados com Deus, ou seja, precisam conhecer as Boas Novas. Não são os nomes que precisam mudar: os mesmos nomes de sempre precisam resgatar seus significados originais, ou então, daqui a algum tempo, precisaremos criar novos nomes para esconder problemas antigos.

Quando o assunto é religião, repisar os clichês não vai nos ajudar. Falar mal da religião em geral e se afirmar não pertencente a um determinado grupo, almejando ser visto como alguém de casta superior, não combina com a mensagem do Evangelho e apenas confundirá ainda mais os que estão de fora. É preciso restaurar o que está quebrado, limpar o que está sujo, resgatar a coerência e o respeito perdidos. OU então, passaremos a vida inventando novos nomes para fraquezas antigas, novas túnicas para adornar vaidades eternas. Reconheçamos a degradação, mas busquemos a regeneração, assim como Jesus já fez por nós. Abandonemos o senso comum de que Jesus é bom, religião é ruim. Só de pensarmos em Jesus e de querermos nos aproximar dele já nos fazemos irreversivelmente religiosos − nos cabe apenas escolher entre a religiosidade sincera e autêntica e a religiosidade senso comum, fria, falsa, friável. 

segunda-feira, setembro 09, 2013

Bandeira e a estrela oculta


Acredite se quiser, fui ler a sério Manuel Bandeira só no primeiro ano da faculdade. Não sério no sentido chato/acadêmico, desses que viram o texto do avesso e tiram dele qualquer prazer possível: sério que eu digo é com a consciência da autoria, é sabendo que O bicho, Vou-me embora pra Pasárgada, Os sapos, Pneumotórax e outras joias da poesia brasileira eram todos poemas do mesmo Manuel Bandeira. Sério seria conseguindo estabelecer relações entre esses textos, descobrir uma lógica, uma visão de mundo.
Não fui um grande leitor de literatura, e talvez ainda não o seja. Primeiro o rock e depois a MPB foram as caçambas onde despejava meus sentimentos, minhas dúvidas, meus demônios pessoais. Antes de tudo, a música.
Logo nos primeiros dias de estudante de Letras, o que continuo sendo até hoje, adquiri o essencial Estrela da Vida Inteira, por causa da importância que um professor lá atribuiu a ele. Trata-se de uma verdadeira constelação de poemas da mais pura sensibilidade, despida dos trajes oficiais da poesia. Ali é possível encontrar parnasianismos e simbolismos tardios, sonetos martelados, mas não falta a dose por vezes homeopática do mais sincero lirismo. Livro para a vida inteira.
Passei um pedaço da eternidade na faculdade. Em um daqueles efervescentes anos em que estive preso à graduação − hoje os grilhões e as musas que me confinam na academia são outros − conheci um amigo, colega de curso e de ocupação. Gente boa, tímido, em dúvida sobre seguir a carreira burocrática de servidor público do Banco do Brasil ou embrenhar-se na fauna-flora semisselvagem das salas de aula, esse colega precisava escrever trabalho sobre Bandeira. Emprestei minha Estrela.
O prédio da faculdade é grande e feito para os desencontros. As vidas nos arrastam por corredeiras sem destino certo. Perdemos contato, perdi meu livro.
Não comprei outro exemplar, sei lá por quê. Talvez esperasse que um dia encontrasse o amigo, que me pediria desculpas e devolveria aquele ou um outro exemplar qualquer, talvez até um  raríssimo autografado pelo poeta menor menormenormenorme, como diria Zé Paulo Paes. Também porque a grana sempre anda curta, também porque a internet nos supre no aperto. Mas sentia falta do tato sagrado daquelas páginas que me entendiam e me explicavam. Ainda que Bandeira tenha chegado inteiro apenas na faculdade, seus poemas me ajudavam a não perder o viço de leitor não profissional, de admirador não exatamente da técnica, mas daquela outra coisa que a gente nem consegue medir ou rotular com precisão, aquele sopro que nos faz apenas sorrir ou chorar, apenas gozar a bênção de ler um bom poema.
As vidas seguem galopando, quando a gente vê passou mais de uma década e a gente está casado, passando lua de mel em Natal, hotel bacanudo. E a surpresa foi encontrar aquele amigo da faculdade que acabou, por razões presumidas e perdoáveis, ficando com o nosso livro do Bandeira. Ele estava passando férias com a esposa, mais funcionário público do que nunca, bem-sucedido, certamente feliz − quem não ficaria feliz em Natal, com aquele sol e aquele mar, as dunas, os camarões e macaxeiras, com aquele cheiro de felicidade envolvendo a cidade? Trocamos sorrisos, cumprimentos, espantos espontâneos, sinceras manifestações de apreço, apresentações e ele falou do meu livro, que estava com ele, que devolveria, por intermédio de seu irmão, que ainda morava no mesmo bairro que eu. Disse que não precisava, que eu compraria outro, que não faria sentido nos encontrarmos em terra distante, desfrutando da felicidade das férias, eu ainda mais, no cume da felicidade de estar celebrando o amor da vida inteira, e ficarmos falando de livros perdidos, esquecidos ou não devolvidos. Que ele deixasse pra lá.
Mas meu amigo, honesto, insistiu. Anotou telefone, acho, ou me pediu que anotasse o dele, não lembro, meu livro chegaria até mim, são e salvo, após tanto tempo. Era um livro do Bandeira, Estrela da vida inteira, não poderia ficar com quem não era seu dono legítimo. Uma estrela que brilha sozinha no céu dos poetas, pela solidão que o abraçou quase que a vida toda, pelo talento sem par com que costurava seus poemas, pela alegria melancólica, pelas danças travadas com a morte. Bandeira e sua estrela não têm dono, todo mundo sabe disso.
Era o Manuel Bandeira querendo participar de um dos pedaços mais felizes dessa minha vida, passando para dar um oizinho, solidário. A vida ainda continua escorrendo, até quando Deus quiser, o irmão do meu amigo até hoje não trouxe a encomenda, e Bandeira não me larga, necessário na sala de aula, essencial nas leituras solitárias. Manuel Bandeira está sempre presente, mesmo que seja em forma de estrela oculta. Sem ressentimentos, preciso encomendar outra Estrela da Vida Inteira.




terça-feira, agosto 27, 2013

A classe médi(c)a brasileira


Os abolicionistas corriam para os portos brasileiros receber os navios negreiros com vaias e hostilidades  os escravos? Imagino que não, dentre outros motivos, porque os escravos, os escravos de fato, não passavam de vítimas de um sistema hostil e vergonhoso.
Os ex-escravos iam receber os imigrantes europeus que vinha para o Brasil trabalhar nas lavouras com hostilidades e vaias? Imagino que não, entre outros motivos, porque sabiam que aqueles homens corriam atrás do próprio sustento e, se faltava uma política de acolhimento dos novos homens livres ao mercado de trabalho de uso de mão de obra escrava, a culpa não era dos imigrantes.
Os médicos brasileiros vaiam os médicos cubanos que vieram para atuar em áreas onde ninguém quer ir. Os médicos brasileiros os chamam de escravos, usam de toda sua força e fúria para hostilizar um grupo que não está tomando o trabalho de ninguém e que, se é que há alguma coisa parecida com escravidão nesse caso, os responsáveis são os governantes cubanos, não os médicos que vieram para cá.
A crueldade ganha requintes diabólicos quando observamos nas imagens de um ato de covardia − e não de reivindicação − médicos brancos e vestidos de branco, com brincos e colares e relógios caros, que foram até o local e voltarão aos seus lares e consultórios particulares dirigindo carros caros, alguns de luxo, mesmo, chamando de escravo médicos negros, que não pilotam carros de luxo, que não podem usar joias raras, que não trabalham em consultórios particulares.
O que querem esses médicos furiosos? Não querem "reserva de mercado", pois não pretendem trabalhar nos rincões abandonados pelo governo e por eles mesmos; não querem apenas que os médicos façam o tal "revalida", pois se a questão fosse apenas referente à prova, não iriam xingar colegas de profissão − ou os "doutores" brasileiros, a maior parte deles sem doutorado algum, pensam ser superiores aos médicos cubanos, argentinos, portugueses e espanhóis?
Aqueles médico pensam fazer parte de um seleto grupo meritocrático e que por isso estão acima de qualquer tipo de comparação, desafio e não acreditam que devam prestar algum serviço à população; a população, nesse caso especialmente a doente e desamparada, existe para que eles possam exercer a profissão, ou seja: os doentes devem servir ao médico, e não o contrário. Eles querem escolher os doentes e não querem que os não escolhios sejam tratados por mais ninguém.
A mentalidade desses médicos enfurecidos me lembra não apenas o vídeo que circula pela internet com a professora − e doutora de fato − Marilena Chauí criticando a classe média. A julgar pelas respostas furiosas tanto de membros da classe média quanto dos proletários que gostam de pensar em si mesmos como membros de uma elite pensante e econômica brasileira, penso que ela acertou na mosca. Também não posso deixar de contar um pequeno episódio ocorrido com um colega de trabalho meu, em uma famosa quermesse da Bela Vista. Em uma fila para comprar, sei lá, uma quermesse, tendo seu caminho obstruído por um senhor de meia idade, vestido elegantemente, solicitou várias vezes passagem, sendo todas as vezes ignorado. Já irritado, tomou a frente do distinto cavalheiro, e foi xingado de todos os nomes, inclusive de "malvestido". Uma garotinha macérrima e vestida com espalhafato que acompanhava o velho cavalheiro, disse a frase perfeita para a situação:
− Você sabe com quem está falando? Sabe quem ele é? Ele trabalha na melhor empresa da cidade de São Paulo!
Sem querer generalizar, claro, mas tomando os baderneiros de jaleco que ofenderam seus colegas cubanos, o cavalheiro de nariz empinado e sua coleguinha deslumbrada como referencial, penso que Marilena Chauí só disse o óbvio. E continuo temendo pelas pessoas que, como eu, dependem da saúde pública para se cuidar…


terça-feira, agosto 06, 2013

E o Paulo Coelho, hein?


 

Alguns meses atrás, exumaram o cadáver da polêmica entre Paulo Coelho e  a crítica literária. Entre frases desagradáveis e textos "acadêmicos", como um que saiu na Folha, do sociólogo Fernando Antonio Pinheiro, nada de novo no Caminho de Santiago.

Toda essa balbúrdia literária chegaria a um fim se cada um ficasse em seu lugar. Muita gente esperneia a falta de reconhecimento do talento literário de Paulo Coelho ao mesmo tempo em que empinam seus narizes e afirmam que  a crítica não serve pra nada, é burra, preconceituosa, elitista, redundante e que o mago não precisa dela pra nada. Ora, eu não me preocupo com o reconhecimento de quem não admiro, não respeito e cujo trabalho não me parece sequer útil. De todas essas afirmações que soam democráticas, libertárias e modernas, a única que me faz sentido, que é realmente verdadeira: Paulo Coelho não precisa, nunca precisou da crítica. Justamente por não precisar dela, por vender muito  bem sem apoio cultural ou resenhas simpáticas, não faz sentido que as pessoas se incomodem com a torcida de narizes que os acadêmicos dão. Cada um seu canto, cada coisa em seu lugar. Aliás, Raquel Cozer já divulgou em seu blog texto baseado em pesquisa que afirma: resenhas e matérias nas páginas culturais de revistas e jornais ajudam muito pouco a vender livros.

Não sei se algum crítico sobre a crítica que ignora Paulo Coelho já procurou saber por que o bruxo não faz o mesmo sucesso na academia (não digo na ABL) que faz nos saguões de aeroportos, na internet, nas livrarias, no Irã. Chamar um grupo inteiro de profissionais, intelectuais, estudiosos da literatura, grupo bem heterogêneo que, apesar de relativamente pequeno, abarca diversas linhas de pesquisa e posições ideológicas, de preconceituoso, burro e elitista, pra mim, é uma postura preconceituosa, burra e "popularista". Há algumas razões para Paulo Coelho não fazer repercutir seu estrondoso sucesso nas salas de aula, nos gabinetes. Procurem saber!

Digo aqui uma que percebo de longe e de há muito: os livros de Paulo Coelho "problematizam pouco". O que quero dizer com isso? Que eles, em sua simplicidade, singeleza, em suas parábolas diretas, em suas comparações explícitas, em seu enredo de fácil assimilação, em suas lições de alcance universal, não oferece muito espaço para explorações, análises, interpretações. Estou certo de que esses recursos são intencionais e que o autor busca com eles alcançar um grande número de leitores, muitos deles pouco afeitos com outros tipos de literatura. Não há pecado algum nisso, e se o cara não fosse bom no que faz, não teria o sucesso que alcançou. Agora, esperar que estudiosos da literatura tenham obrigação de reconhecer o talento "indiscutível" de Paulo Coelho é demais. Há entre professores de literatura e críticos quem discorde sobre o talento e a genialidade de Machado de Assis, de Guimarães Rosa, José de Alencar, Drummond, Oswald de Andrade, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Paulo Leminski, Lima Barreto, Ferreira Gullar, Luis Fernando Veríssimo, Manuel Antônio de Almeida, Clarice Lispector, Murilo Mendes, Lygia Fagundes Telles, isso para ficar apenas entre os brasileiros. Por que Paulo Coelho deveria ser alçado automaticamente do sucesso na livraria para o sucesso acadêmico?

Aí o defensor de Paulo Coelho dirá, com razão, que todos os autores citados acima − eu gosto de alguns, desgosto de outros − têm seus defensores e detratores, enquanto Paulo Coelho só tem detratores. Que estranha unanimidade seria essa que irmana toda a crítica brasileira − a ignorância no assunto me faz desconhecer se a unanimidade entre os críticos é universal − contra o autor de O alquimista? Não creio na unanimidade sobre Paulo Coelho: é possível que haja professores universitários dos cursos de Letras que sejam admiradores de Brida ou do Diário de um mago. Nem por isso, até agora, houve um grande movimento no sentido de analisar sua obra, pelas razões que já dei acima. Enquanto Machado de Assis produz frases famosas, como "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis", para citar uma fala célebre, criativa, irônica, famosa, entre tantas outras que poderíamos usar, Paulo Coelho escreve "Quando você realmente deseja uma coisa, todo universo conspira ao seu favor", que, cá pra nós, não é nenhum exemplo de frase lapidada e sequer deve ser levada a sério fora dos círculos da teologia da prosperidade ou das editorias de autoajuda.

Um outro motivo para não vermos uma fortuna crítica de peso sobre Paulo Coelho é que ele não tem uma obra literária de vulto (pronto, falei). Seus livros são quase sempre histórias para "aquecer o coração do leitor", pano de fundo para que frases de efeito e fórmulas de autoajuda ganhem algum destaque. Olha só: "Não tenha medo do sofrimento, pois nenhum coração jamais sofreu quando foi em busca dos seus sonhos". Não tem muito cabimento dizer que Paulo Coelho faz uso do senso comum de forma "consciente" para justamente "criticar" o senso comum, enquanto conquista um número de maior de leitores e espalha sua mensagem de paz e fraternidade entre os mansos da terra.

Confesso que as frases foram colhidas na internet e que podem muito bem ser apócrifas. Mas vai me dizer que isso faz mesmo alguma diferença? Quem é fã de Paulo Coelho não é porque vê em seus livro alguma semelhança com Shakespeare, Thomas Mann ou Borges: são fãs por causa dos livros que o próprio Paulo Coelho escreveu. E nem cola aquele papo batido de que o cara começa lendo livros do bruxo pra depois ler Dostoiévski: Paulo Coelho amortece o sofrimento com doses de ilusão, o gênio russo nos choca com a miséria da condição humana. Cada um escolhe suas armas para suportar a existência humana, uns repetindo mantras fofinhos, outros tomando consciência da dor universal, para depois lidar com ela. Uns gostam, precisam da surpresa escondida na arte (ler Adorno), outros querem apenas relaxar com a previsibilidade. Cada universo, suas regras, seus antagonistas.

Nem todo sincretismo é legal. Então, aos coelhistas, peço que não cacem chifres em ovo, tampouco cabelo em testa de cavalo: ou não existem, ou os há em tamanha quantidade que denunciá-lo é a mais infrutífera das decisões.

 

 

CARTILHA DO PÓS-CONTEMPORÂNEO EM FASCÍCULOS APRESENTA


A LETRA A
(GRÁTIS: LETRA C E UM ESPETACULAR TRAVA-LÍNGUA):

A CARA DO PAPA NA CAPA DA CARAS

domingo, agosto 04, 2013

Santástico vexame


Não escrevi antes sobre este assunto por três motivos: falta de tempo, não assisti ao jogo com a devia atenção, não queria, no calor do momento, insultar ninguém; quando somos torcedores, temos uma espécie de licença para sermos irracionais, deixamos a paixão nos levar, seja nos louros da vitória, seja na fúria por derrotas humilhantes; tento abrir mão dessa licença.
Torcedor também não costuma ser grato nas derrotas, especialmente as sem muito sentido, as decorrentes de flagrante e notória incompetência. Todos os créditos se perdem quando jogadores, técnicos e dirigentes pisam feio na bola ao não enxergarem o óbvio.
Tento ser grato à atual diretoria do Santos. Entre 2010 e 2012 tivemos grandes alegrias, intercaladas por alguma preguiça, fruto da sensação de dever cumprido para o ano. Esse deitar-se esplendidamente sobre as conquistas do primeiro semestre nos impediu de concorrer a títulos importantes no segundo semestre; faz tempo que não disputamos com seriedade o campeonato brasileiro, embora tenhamos três títulos estaduais − cada vez menos prestigiados, embora não seja justo simplesmente desprezá-los − uma Copa do Brasil, uma Libertadores e mais aquela mais ou menos Recopa Sul-americana. Não foi pouco.
Em compensação, por razões que ainda não estão exatamente esclarecidas, fomos protagonistas de um vexame em escala internacional, ao não vermos a cor da bola na disputa pelo mundial de clubes de 2011. Os jogadores que lá estiveram defendendo o distintivo do mais nobre dos clubes brasileiros (fala de torcedor, mas de torcedor consciente!) não agiram como se  estivessem defendendo não apenas o próprio prestígio profissional, mas a honra de um clube conhecido internacionalmente. Montados sobre uma fama construída em campeonatos nem tão disputados assim, desmontaram-se diante do adversário em uma atitude esquizofrênica, entre o deslumbramento e a admiração idólatra pelo adversário.
Não gosto de ser ingrato, coisa que nós torcedores sabemos fazer tão bem. Mas ao longo desse ano, a mesma diretoria que soube segurar e contratar jogadores competentes ou craques da estatura de Neymar, fez péssimos negócios, desprestigiou um técnico indiscutivelmente vencedor − mas que já não estava a fim de muita coisa, reconheçamos − perderam jogadores competentes, grana e títulos. Confiando na mística de que o glorioso alvinegro praiano já contava com pelo menos três gerações de meninos da Vila, a chamada Vila Famosa, digo a Vila mais famosa do mundo, marcaram, para lucrar alguma coisa, um amistoso entre um time feito de improviso, com garotos ainda inexperientes, contra o time mais respeitado e temido da Terra, time este reforçado com um craque da estatura de Neymar, motivado e feliz pela sua estreia.
Dessa vez, livres da ilusão coletiva que nos acometeu em 2011, nenhum torcedor do Santos era capaz de acreditar em uma vitória, em um empate sem gols que fosse. Os mais otimistas, como eu, imaginavam que haveria um jogo de compadres, cujo resultado ficasse em torno de 3 gols de diferença, e isso contando com a nobreza do adversário. Os mais pessimistas pensavam em cinco, seis gols. Levamos oito sem ver a cor da bola.
Não sou um estudioso do futebol, entendo pouco ou nada de tática, gosto de ver jogadas bonitas, sei diferenciar um volante de um zagueiro e torço de coração pelo Santos e pelo Brasil, em primeiro lugar, mas raramente assisto a alguma disputa, de qualquer esporte que seja, sem tomar partido. Até eu, torcedor leigo que sou, sabia que um jogo entre o time que mais acumulou títulos nos últimos anos e outro cuja maior parte dos jogadores e a comissão técnica sequer goza de experiência regional − técnico e boa parte dos jogadores ainda não disputou partidas contra Corinthians e Palmeiras, por exemplo − não poderia dar em coisa boa para nós. Quanto dinheiro poderia pagar a humilhação, o vexame, as piadas feitas até pela seleção do Taiti, que sequer é formada por profissionais?
Laor e demais dirigentes do Santos, continuo grato pelas vitórias do passado recente. Mas gostaria de crer que absurdos como estes não se repetirão mais. Gostaria de crer que vocês não confirmarão a tradição histórica de que o tempo de validade dos cartolas brasileiros é extremamente curto, que o competente de hoje é o burro de amanhã, que o moderado e honesto de agora será guloso e corrupto depois. Não endossaria a opinião de que esta equipe deve sair imediatamente da diretoria do Santos, mesmo porque minha opinião de distante torcedor não vale pra muita coisa, mas tenho duvido que o coração de vocês esteja sangrando mais que o meu.

terça-feira, julho 23, 2013

Asa Branca de luto


Dominguinhos manejava a sanfona de um jeito tão tocante que doía na gente, tamanha a beleza de suas composições, de suas interpretações. Por isso estamos tão tristes.
Parte de uma tradição da música brasileira que vem sendo aos pouquinhos dilacerada e esquecida, aquela cujos artistas têm o que dizer, com seu jeito bonachão, Dominguinhos construiu, sem um pingo de afetação, sem o pedantismo que infecta quase todos os "pensantes" brasileiros, uma obra popular elevadíssima.
Único herdeiro musical de Luiz Gonzaga, mas sem nunca querer ocupar o lugar de rei ou príncipe do baião, sempre generoso com os artistas que o sucederam, sem discriminar sequer os embusteiros do chamado forró universitário, aquele forró sem raiz nem seiva, Dominguinhos contribuiu para o cancioneiro nacional com algumas das canções mais tocantes que eu conheço, dessas que ao ouvir, o cabra pode até ser valente, mas chora.
Onde ele buscava aquelas notas, como aprendeu a combiná-las em acordes, melodias, arranjos tão especiais? Acho que é da própria terra onde ele nasceu. Sim, porque o Nordeste não dá ao mundo apenas coronéis, políticos corruptos e homens endurecidos pela seca e pela violência que recebem de patrões e do governo: também gera filhos de sensibilidade e humor refinadíssimos. Tenho muitos parentes que, sem ter o talento de Dominguinhos, que esse é único, são tão bonachões e bem-humorados quanto o eterno Neném, apelido de família e como Dominguinhos era chamado por Luiz Gonzaga. Acho que também vem de sua criação e história pessoal o dom de falar da saudade com tanta poesia, seja no timbre da voz, seja no resfolego da sanfona.
No fim da vida, Dominguinhos sofreu muito, por causa de uma doença cruel − a prova de que a morte não respeita os homens bons. Muitas foram as orações, as promessas e súplicas para que ele se recuperasse − prova de que nem sempre conseguimos concordar com Deus.
Pra completar a tristeza, hoje o frio está mórbido em São Paulo. E não há fogueira de São João que possa nos aquecer ou consolar. O que nos resta, sem consolar, é lamentar. Dominguinhos: é duro ficar sem você.

terça-feira, julho 02, 2013

3G

Gala, gol e glória
Há momentos na vida em que o futebol é a coisa menos importante do mundo, como, por exemplo, a quase totalidade da vida, tirando os momentos em que o futebol é importante.
2013, por exemplo, não é um ano para ficarmos muito atentos ao futebol, eu pensava enquanto meu time, o Glorioso Alvinegro Praiano, passava pelas partidas sem empolgar nem ao mais doente santista. E depois, o Neymar foi embora, não chegou ninguém capaz de nos animar.
Mas havia a seleção e uma Copa das Confederações em casa! Boa bobagem esse negócio de Copa das Confederações. Um evento que serve apenas como teste para sabermos se os estádios estão em condições de receber essa gente endinheirada.  E a seleção, tão fraquinha que andava,coitada, com um jogo feio e pouco eficiente. E tem mais: jogar em casa, no caso do Brasil, significa ter obrigação de jogar bem, sob pena de receber um temporal de vaias antes da metade do primeiro tempo! Nosso apoio à seleção sempre foi condicionado a grandes apresentações, a apresentações esforçadas, pelo menos, com muita raça onde faltar talento.
Aí os jogos começaram. Houve boas partidas, más partidas, um time amador, o do Taiti, muito simpático e pouco habilidoso. Havia, nos jogos do Brasil, o adorado e vaiado Neymar. E havia críticas a esse e aquele jogador, esquema, postura. Tudo meio como sempre, meio sem valer a pena.
Mas, além dos jogos, dos gols, das falhas, havia uma multidão nas ruas. E essa multidão não estava tão interessada em Neymar, gols copas: a multidão clamava por um novo país, por uma nova mentalidade, uma nova postura. Aí é que o futebol perdeu muita importância, mesmo!
O preço das tarifas de ônibus, a corrupção endêmica, os superfaturamentos das obras para a Copa, o povo do lado de fora da festa, convidado para ficar nas ruas, para ver de longe uma festa para outros povos, tudo isso mexeu com os brios da população muito mais do que o medo dos passes calibrados dos espanhóis, a marcação competente dos italianos, a catimba fria dos uruguaios. O povo foi às ruas exigir honestidade, justiça, respeito, coisas que nem sempre acontecem no futebol, seja pelo imponderável tão presente nos gramados, seja pela fome desmedida de dinheiro, poder e holofotes dos cartolas. O futebol que esperasse.
Mas então, eis que chegamos à final! Ao lado dos espanhóis. E os espanhóis eram os francos favoritos, os donos do futebol mais moderno, da eficiência tática, da hegemonia do momento.
Poucos minutos antes da partida, o Binho, amigo de décadas e fanático por futebol perguntou se eu via alguma chance para a seleção brasileira. Disse que a única chance seria comprarmos o jogo. Eu, sabidão, repetia apenas o que o bom-senso já vem dizendo desde pelo menos um ano, quando os espanhóis humilharam a Itália na final da Eurocopa com um inquestionável 4 x 0. E outra: a Espanha não faz duas partidas ruins seguidas, e como já havia saído de uma disputa de pênaltis contra a Itália, nossas chances simplesmente não existiam.
Aí tivemos a partida. Arrepios e lágrimas durante a execução do hino nacional brasileiro. Bombas de efeito moral e gás de pimenta do lado de fora do estádio. Diante da televisão, muitos brasileiros deram as mãos ao mesmo tempo aos jogadores e aos manifestantes que estavam ao redor do estádio pedindo um país mais honesto − a honestidade já bastaria para começarmos a construir uma nação diferente.
 Uma dose de sorte, uma pequena lambança na área espanhola. Coquetel molotov e caveirão ao redor do Maracanã. Um gol esquisito de Fred.  Aí, Deus seja misericordioso, largamos involuntariamente as mãos dos manifestantes para abraçarmos a seleção brasileira, em noite e gala, glória e gols nos Maracanã.
Os espanhóis atônitos assistiram à exibição de gala dos canarinhos-feras de Felipão. E, como nós desejamos que aconteça com o Brasil, assim foi com a seleção: os criticados, injustiçados, indesejados, se redimiram, foram regenerados e voltaram a ter seu valor reconhecido. O criticado Oscar deu passe certeiro. O craque Neymar fez gol furioso em cima da falsa fúria − esses espanhóis, ganhando ou perdendo, estão mais para algum animal polar. O ainda mais criticado Hulk participou de dois gols. O injustiçado David Luiz fez a maior jogada que um zagueiro pode fazer em sua carreira. Fred fez o que sabe fazer. E o Brasil quase todo iluminou-se, houve uma enxurrada gloriosa de alegria, dessas que lavam alma e nos atordoam.

 O jogo acabou, nossa alegria permaneceu. Analistas avisam enervados que Copa das Confederações é uma coisa, Copa do Mundo é outra. Eles têm razão. Mas antes de nos preocuparmos com a Copa jogada em campo, vamos nos ater aos orçamentos dos estádios, ao dinheiro público que, emprestado ou não, está servindo a interesses meramente privados. Vamos nos lembrar dos que protestaram do lado de fora, protestemos com eles, que a hora é essa. Deixemos essa noite "3G" emoldurada na parede da memória, voltemos a ela sempre que precisarmos elevar nossa autoestima. Mas voltemos a exigir um país novo, pois o momento de colocarmos o futebol em primeiro lugar foi delicioso, mas já passou.

quinta-feira, junho 13, 2013

Reaprender a protestar


O povo não gosta de greves. Também não gosta de protestos. Quando eu era adolescente, achava romântico um ato público em defesa de qualquer coisa: direitos humanos, honestidade na política, educação de qualidade. Quando via um grupo de trabalhadores em greve, qualquer grupo, respeitava aquelas pessoas sobre caminhões ou empunhando bandeiras como se fossem heróis. Hoje, boa parte das pessoas, quando vê alguém reivindicando qualquer coisa, logo o etiqueta com o título de vândalo, baderneiro, vagabundo.
Quando eu era adolescente já havia muita gente que via manifestantes e grevistas em geral como vândalos e baderneiros. Aprenderam com os anos de ditadura militar, com a Rota na rua, que espancava qualquer pessoa que, ao ser parada na rua, não estivesse portando sua carteira de trabalho em dia. Estar desempregado, por exemplo, era um quase crime. Valorizava-se muito mais um adolescente que trabalhasse do que um que estudasse; estudar para o povão da periferia deveria ser algo secundário, para os horários noturnos, depois de passar o dia inteiro ralando em algum emprego insalubre por algum salário ridículo. Trabalhando de dia e trabalhando de noite, ou trancado em casa, não haveria tempo ou energia para protestar.
Ainda há, e cada vez mais, quem concorde com essa visão de mundo. Quem trabalha e estuda não tem tempo de protestar, logo, quem protesta é desocupado e quem é ou está desocupado é um quase criminoso. A quem se sentir injustiçado, manipulado, humilhado, sempre haverá o direito ao lamento. Amélia achava bonito não ter o que comer, por isso, e pela sua falta de vaidade, era exaltada como "a mulher de verdade". O trabalhador que, a despeito de problemas de saúde, de salário ou condições mínimas de exercer sua função é elogiado como "profissional". Ignora-se que "profissional", geralmente, cobra pelos serviços prestados.
Contra as injustiças, o silêncio imposto, o preconceito medroso da sociedade, é preciso protestar. Contra os baixos salários, as péssimas condições de trabalho, os preços abusivos de serviços essenciais para a população, a depredação da saúde, da educação, da cultura e de tudo que coopera para a nossa humanização, é preciso protestar. Mas estão fazendo isso direito?
Eu penso que não. A população, que deveria se interessar pelas manifestações contra o aumento das tarifas do transporte público, pelas péssimas condições de trabalho, pelos problemas de saúde e pelos ridículos salários que são pagos aos professores, também. A população que sofre nos hospitais e postos de saúde, precisa reivindicar para que não morra nas filas das UBS. Mas estamos fazendo o convite do modo adequado?
Há muita manipulação nas manifestações públicas. Muita gente que inflama e obstrui assembleias com o único propósito de ganhar alguns pontos na hierarquia do partido a que pertence. Há muita ingenuidade, também. Muitos jovens cheios de energia e com um genuíno desejo de transformar o mundo, mas que se deixam levar pelo discurso irreal de alguns "gurus". Gente boa foi expulsa na USP no episódio da invasão da reitoria porque acreditava que estava participando de algo revolucionário, enquanto estavam, na verdade, sendo manipulados por estudantes profissionais, que recebem salário de grupos políticos para plantarem a "sementinha do socialismo".
É preciso protestar de modo eficiente e não é colocando "guarani-kaiowá" no facebook que tudo mudará. Nem é preciso convencer o povo de que algo vai mal, pois o povo sabe que as tarifas de transporte estão caras, que os professores são desrespeitados, que faltam remédios essenciais nos postos de saúde. É preciso mostrar ao povo que é possível mudar. É preciso convencer o povo de que os que os protestantes estão realmente do lado do povo, que não almejam apenas promover suas carreiras particulares. É preciso ser criativo na hora de protestar − nariz de palhaço, vestir-se de preto, empunhar a bandeira nacional ou entregar flores para a tropa de choque viraram clichês; clichê, senso comum, atuam apenas na superfície, não levam ninguém a refletir, e o povo precisa refletir para agir de modo consciente.

O maior desafio político do momento é aprender a protestar, a revindicar de um modo que seja genuíno, útil e convincente. Que coloque o povo a seu próprio favor. E que coloque o governo a favor do povo que o elegeu. O voto depositado na urna, ao contrário do que muita gente pensa, não legitima qualquer coisa que o governo fizer; aquele voto pode significar, muitas vezes, que os governantes foram escolhidos por exclusão, não por afinidade ideológica. Da mesma forma, a falta de adesão aos protestos não significa que o povo está satisfeito com tudo; pode refletir apenas a falta de fé da população e desconfiança com relação aos "líderes da oposição". Por isso, é urgente encontrarmos novos caminhos.

quinta-feira, junho 06, 2013

Não exija, chore!


Juro que ouvi duas vezes, no espaço de dois meses de pessoas e em espaços  diferentes, essas palavras sendo ditas para  funcionários públicos que, por incompetência ou preguiça de alguém, ficaram sem salário, apesar de terem cumprido direitinho com suas obrigações:
− Continuem trabalhando, ou sofrerão sanções administrativas. Trabalho não tem nada a ver com salário. Estamos aqui para defender os interesses do Estado e dos alunos (adaptei e condensei as falas).
No caso de o funcionário questionar, exigir o pagamento do salário que lhe é devido, informar que, sem salário (às vezes sem receber há dois, três ou quatro meses), não terá condições de se deslocar até seu posto de trabalho, fora outras restrições comuns a quem não tem dinheiro, como por exemplo comer, tomar banho e comprar remédios, ouve, sem titubeio desses capitães do mato do serviço público, alguns impropérios: arrogante, malcriado, folgado, e ainda recebe mais ameaças, sorrisos irônicos e é acusado de ser o responsável pelo não pagamento, ainda que tenha exercido suas funções direitinho e entregue, no prazo estipulado, a documentação solicitada.
Isso acontece, em parte, porque o brasileiro é acostumado a ver o conflito como algo negativo, ruim, de mau gosto. Lamentar é permitido, pois o lamento não exige atitudes. Então, se o funcionário injustiçado fizer cara de choro e continuar heroicamente trabalhando, será considerado um ótimo "profissional", que "ama e respeita seu ofício" e que entende que o sistema é ruim, puxa vida. Sempre que precisar de algum "favor", será, obviamente, contemplado, se não houver ninguém mais querido pelos seus superiores, claro, na frente.
Não consigo falar em profissionalismo sem que o profissional esteja sendo dignamente pago pelo seu trabalho. Quem trabalha sem receber salário é escravo, amador ou voluntário. O profissional não deve ser valorizado por ser um "bom rapaz", uma "menina meiga", mas por ser competente − e o chefe, o patrão, o capataz, só pode exigir competência se também cumprir o acordo, do qual podem fazer parte muitas coisas, da cesta básica a férias no Taiti, mas nunca deixará de incluir salário.
Jogadores de futebol também sofrem com essa cultura do lamento e da fuga do conflito. Se um time está sem receber salário e entra na justiça cobrando seus direitos, ou se recusa a entrar em campo, logo é chamado de mercenário e corre o risco de ser até mesmo agredido por torcedores na rua; exige-se de jogadores profissionais que joguem por amor à camisa. Quem precisa amar o clube são os dirigentes, e ainda assim aqueles não remunerados,  e os torcedores. Exigir raça e parabenizar profissionais que estão sendo feitos de otários por seus patrões me lembra o que acontecia com os gladiadores.
É deselegante um funcionário exigir direitos básicos, embora seus patrões adorem destratar garçons, porteiros, frentistas, recepcionistas, professores e demais profissionais sempre que acharem que estão sendo mal servidos. Direitos humanos, trabalhistas e do cidadão eles acham que é cosa feia, mas direito do consumidor e direito à carteirada é com eles. Nesses casos, não entendem suas exigências como conflito, pois, acreditam estar em patamares superiores na sociedade, pela inteligência, beleza, classe social ou porque são uns babacas mesmo. Acham que estão apenas "colocando as coisas em seus devidos lugares". O conflito de que falo é aquele que subverte a ordem estabelecida, que busca desfazer injustiças, que vai ao encontro do mais fraco.
Nós brasileiros, homens cordiais, filhos de três séculos de escravidão e colonialismo, duas ditaduras e de uma infinita cultura do favor, sofremos com isso. Na cultura do favor, o que conquistamos não são de fato conquistas, são concessões, ajudinhas, fruto da benevolência de nossos governantes,  das classes sociais mais privilegiadas. Uma das estratégias para que continuemos cordiais é, por exemplo, apelar para o nosso "bom-senso": os que nos prejudicam são ótimas pessoas, arrimo de família, solidárias, fazem doações para asilos e estão "muito mal com o ocorrido". Precisamos entender, ser pacientes e tolerantes, pois tudo se resolve: não tem grana pra ir trabalhar? Pega uma carona. O aluguel atrasou? Negocie com o senhorio, ele vai entender. A fatura do cartão explodiu? Chato, né, também já passei por isso. Quando receber seu salário, sem correção e com descontos gordos de imposto do renda, você resolve.
Ou seja, em vez de resolver a questão, passe a bola adiante, ou engula seus problemas com um sorriso no rosto, seja versátil, mostre suas habilidades. Seja cordial, dócil e manso. Afinal, estamos na cultura é do favorecimento e do lamento, não do conflito.  Seja bonzinho que um dia desses alguém lhe fará o grande favor de pagar o seu salário − mas só se você se comportar bem, viu?


Seguidores