terça-feira, agosto 27, 2013

A classe médi(c)a brasileira


Os abolicionistas corriam para os portos brasileiros receber os navios negreiros com vaias e hostilidades  os escravos? Imagino que não, dentre outros motivos, porque os escravos, os escravos de fato, não passavam de vítimas de um sistema hostil e vergonhoso.
Os ex-escravos iam receber os imigrantes europeus que vinha para o Brasil trabalhar nas lavouras com hostilidades e vaias? Imagino que não, entre outros motivos, porque sabiam que aqueles homens corriam atrás do próprio sustento e, se faltava uma política de acolhimento dos novos homens livres ao mercado de trabalho de uso de mão de obra escrava, a culpa não era dos imigrantes.
Os médicos brasileiros vaiam os médicos cubanos que vieram para atuar em áreas onde ninguém quer ir. Os médicos brasileiros os chamam de escravos, usam de toda sua força e fúria para hostilizar um grupo que não está tomando o trabalho de ninguém e que, se é que há alguma coisa parecida com escravidão nesse caso, os responsáveis são os governantes cubanos, não os médicos que vieram para cá.
A crueldade ganha requintes diabólicos quando observamos nas imagens de um ato de covardia − e não de reivindicação − médicos brancos e vestidos de branco, com brincos e colares e relógios caros, que foram até o local e voltarão aos seus lares e consultórios particulares dirigindo carros caros, alguns de luxo, mesmo, chamando de escravo médicos negros, que não pilotam carros de luxo, que não podem usar joias raras, que não trabalham em consultórios particulares.
O que querem esses médicos furiosos? Não querem "reserva de mercado", pois não pretendem trabalhar nos rincões abandonados pelo governo e por eles mesmos; não querem apenas que os médicos façam o tal "revalida", pois se a questão fosse apenas referente à prova, não iriam xingar colegas de profissão − ou os "doutores" brasileiros, a maior parte deles sem doutorado algum, pensam ser superiores aos médicos cubanos, argentinos, portugueses e espanhóis?
Aqueles médico pensam fazer parte de um seleto grupo meritocrático e que por isso estão acima de qualquer tipo de comparação, desafio e não acreditam que devam prestar algum serviço à população; a população, nesse caso especialmente a doente e desamparada, existe para que eles possam exercer a profissão, ou seja: os doentes devem servir ao médico, e não o contrário. Eles querem escolher os doentes e não querem que os não escolhios sejam tratados por mais ninguém.
A mentalidade desses médicos enfurecidos me lembra não apenas o vídeo que circula pela internet com a professora − e doutora de fato − Marilena Chauí criticando a classe média. A julgar pelas respostas furiosas tanto de membros da classe média quanto dos proletários que gostam de pensar em si mesmos como membros de uma elite pensante e econômica brasileira, penso que ela acertou na mosca. Também não posso deixar de contar um pequeno episódio ocorrido com um colega de trabalho meu, em uma famosa quermesse da Bela Vista. Em uma fila para comprar, sei lá, uma quermesse, tendo seu caminho obstruído por um senhor de meia idade, vestido elegantemente, solicitou várias vezes passagem, sendo todas as vezes ignorado. Já irritado, tomou a frente do distinto cavalheiro, e foi xingado de todos os nomes, inclusive de "malvestido". Uma garotinha macérrima e vestida com espalhafato que acompanhava o velho cavalheiro, disse a frase perfeita para a situação:
− Você sabe com quem está falando? Sabe quem ele é? Ele trabalha na melhor empresa da cidade de São Paulo!
Sem querer generalizar, claro, mas tomando os baderneiros de jaleco que ofenderam seus colegas cubanos, o cavalheiro de nariz empinado e sua coleguinha deslumbrada como referencial, penso que Marilena Chauí só disse o óbvio. E continuo temendo pelas pessoas que, como eu, dependem da saúde pública para se cuidar…


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