terça-feira, outubro 01, 2013

Mudar de nome não vai adiantar



Não precisamos dizer que o senso comum traz alguns problemas significativos − isso também é um grande senso comum. Também não afirmaremos que o senso comum não é um mal em si mesmo e que ele tem sua função no pensamento humano − todos percebemos isso com facilidade. A questão é saber o lugar e a utilidade de cada coisa.
Desde quando me converti ao protestantismo ouço falar que o grande mal das religiões é a religião. Tá legal, não exatamente com essas palavras, mas, sem perceber, dizem exatamente isso. Entre as igrejas cristãs essa fala é muito comum. Demonizam o que chamam de religiosidade como se ela fosse o maior mal sobre a Terra. Sacralizam e dessacralizam coisas, hábitos, lugares, promovem uma verdadeira dança das cadeiras com relação a tudo que nos remete ao divino, com tudo que faz parte do âmbito religioso. Falar mal da religião virou o maior clichê inclusive entre os religiosos que têm vergonha de sê-lo.
Essa confusão, essa resistência em chamar qualquer prática religiosa de religiosa (eita ferro!) é bem comum entre os cristãos. Nas universidades, nos espaços acadêmicos, essa frescura não existe. Tudo que busca manter contato, entender, apreender aquilo que não está neste mundo real (no sentido de existir de fato, mais no sentido platônico, em oposição ao mundo ideal), concreto, visível, tangível, esquadrinhável, é chamado de religioso. Temos a filosofia da religião, as ciências da religião, a teologia entre elas, e tudo funciona sem crise, resistência, recusa. Só os religiosos não gostam do termo religião.
Isso acontece devido a vários fatores, desde a vergonha intelectual por fazer parte de algo que nem sempre é considerado sério e respeitável no meio acadêmico, seja por não querer ser comparado aos religiosos mais ingênuos e rústicos, ou aos mais nítidos estelionatários da fé que grassam em todo o Ocidente e ao menos em boa parte do Oriente também. Em muitos ambientes, a religião é o espaço dos tolos, dos menos privilegiados do ponto de vista intelectual, dos que aderem facilmente ao comportamento de rebanho. Ninguém que almeje o respeito acadêmico quer fazer parte de um rebanho.
Também existe, dentro de ambientes religiosos, os que afirmam não ser religiosos por identificarem neste contexto a repetição exaustiva de rituais, de práticas mecânicas que nada teriam a ver com o relacionamento direto e verdadeiro com o divino, com Deus propriamente dito. Esses acreditam não estar dentro de um contexto religioso porque, pensam, com eles a relação com o divino é tão genuína, tão intensa, tão corriqueira, tão honesta, tão cerebral, que não precisam de nenhum tipo de ritual, de nenhuma prática mecânica para se integrarem com Deus, que não está distante, mas bem aqui pertinho.
São estes dois modos de lidar com a religião fingindo que não. No segundo caso, muitos são os picaretas que fazem uso desse discurso, especialmente no meio evangélico, para poderem se separar das "outras religiões", especialmente do catolicismo, tão cheio de rituais e mediações. O curioso dessa visão de mundo é que justamente estes que tanto criticam a religiosidade que veem nos sacramentos, missas e feriados, práticas milenares da igreja católica, não passam muito tempo sem inventar os seus rituais pessoais, de acordo com seus interesses do momento. Multiplicam-se as fogueiras santas, os cultos de milagres, os jejuns da vitória, os cultos de libertação, as orações nos montes, os sete passos para o êxtase cósmico de Israel, a toalhinha suada de Emaús, o tijolinho da muralha de Jericó, o cheque voador da promessa, ou o cheque da promessa voadora… Para se libertarem da religiosidade e seus rituais, criam uma série de novos, ou melhor, de requentados expedientes religiosos, cada vez mais esdrúxulos.
Já no primeiro caso, a coisa assume uma complexidade maior, complexidade que nem sei se consigo desenvolver aqui com a clareza e competência necessárias. Mas ao menos um ponto me parece ser bem claro: há um grupo de religiosos que, consciente do preconceito que a religião sofre nos ambientes intelectuais, como por exemplo nas universidades e entre artistas, simplesmente prefere não receber o carimbo de "religioso", o que de imediato lhe traria a pecha de pouco inteligente, ingênuo, desinformado, alheio à ciência etc.
Esse grupo, que não enfrenta essa situação sem passar por uma crise, luta contra uma série de paradigmas e tenta agrupar em um mesmo balaio esferas da vida humana que ao longo da história se tornaram inconciliáveis. Se houve um tempo em que a ciência era desenvolvida e estimulada dentro da igreja, chegou um momento em que, para manter sua independência e seguir sua trajetória mais ou menos livre de intervenções e ideias pré-concebidas, a ciência em geral precisou romper com a tradição religiosa, o que, a meu ver, só fez bem a cientistas e religiosos.
Porém, ainda hoje há quem busque na ciência, digamos laica, pontos de apoio que sustentem a sua fé, ou que pretendem lidar com a teologia não como um recurso para lidar e entender um determinado tipo de fé, mas como se teologia fosse um mero ramo da filosofia − o que até pode ser verdade para os que não têm fé e se ocupam da teologia como um objeto de pesquisa. Todo esse esforço, me parece, tem o propósito de não ser confundido com os místicos desenfreados, ou com os estelionatários da fé. Barateiam a tradição e tentam romper com os rituais − acredito que não existe religião sem seus rituais e dogmas −, além de questionar praticamente tudo que faz parte da religião, pois se não são pessoas religiosas, não podem manter práticas religiosas.
Contudo, não há nada mais religioso do que o desejo de se comunicar com Deus, não há nada mais religioso do que acreditar em algo cuja existência e verossimilhança não se podem provar. Pecado, necessidade de redenção e justificação, crer na vida após a morte de modo a transformar a vida antes da morte, tudo isso não pode deixar de ser visto como práticas religiosas, porque o são. Encontrar novos nomes e mesmo novos meios de lidar com o divino não vai transformar a religião em outra coisa.
Sendo assim, o sacerdote que afirma deixar de ser evangélico para pregar o Evangelho para os evangélicos não vai além de um simples jogo de palavras, jogo, aliás, de pouco efeito prático. Evangélico, na essência do termo, é quem tem a preocupação de evangelizar. Cristão é quem segue a Cristo, suas ideias, seus mandamentos, além de crer na própria divindade do Messias. Evangélico não é, nunca foi, embora haja muita confusão, quem frequenta ou é membro de uma igreja que se apresenta como evangélica. Religioso não é apenas quem pratica uma série de rituais esvaziados de significado; este, no máximo, será um mau religioso, sem compreender o que está fazendo e, consequentemente, sem alcançar aquilo que tanto deseja.
Em vez de se preocupar em não ser identificado com esse ou aquele grupo, de se empenhar em fazer com que suas práticas religiosas sejam prestigiadas entre cientistas, por exemplo, vale mais o empenho em ser religioso e evangélico por inteiro, na essência que essas palavras carregam em si. Afinal, para quem acredita na mensagem de Cristo, os homens seguem precisando ser religados com Deus, ou seja, precisam conhecer as Boas Novas. Não são os nomes que precisam mudar: os mesmos nomes de sempre precisam resgatar seus significados originais, ou então, daqui a algum tempo, precisaremos criar novos nomes para esconder problemas antigos.

Quando o assunto é religião, repisar os clichês não vai nos ajudar. Falar mal da religião em geral e se afirmar não pertencente a um determinado grupo, almejando ser visto como alguém de casta superior, não combina com a mensagem do Evangelho e apenas confundirá ainda mais os que estão de fora. É preciso restaurar o que está quebrado, limpar o que está sujo, resgatar a coerência e o respeito perdidos. OU então, passaremos a vida inventando novos nomes para fraquezas antigas, novas túnicas para adornar vaidades eternas. Reconheçamos a degradação, mas busquemos a regeneração, assim como Jesus já fez por nós. Abandonemos o senso comum de que Jesus é bom, religião é ruim. Só de pensarmos em Jesus e de querermos nos aproximar dele já nos fazemos irreversivelmente religiosos − nos cabe apenas escolher entre a religiosidade sincera e autêntica e a religiosidade senso comum, fria, falsa, friável. 

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