segunda-feira, novembro 25, 2013

A educação caranguejo


O acúmulo de teorias e ideias pedagógicas ao longo de muitos e muitos anos − penso em algo em torno de cinco séculos, mais ou menos − nos faz perceber, neste momento da história, que a educação nunca correu tanto risco de, inexistindo qualquer evolução sensível nas últimas décadas, ir correndo abraçar os retrocessos como se estes fossem a tábua de salvação, se não da educação como um todo, ao menos da paz de espírito − alguns de porco, é bem verdade − do corpo docente e dos governantes em geral − esses suínos por excelência.
Em primeiro lugar, o número de professores que marejam os olhos quando pensam na  repetência é cada vez maior. Já existem inclusive professores que têm saudade de algo que sequer viveram, posto que a aberração da aprovação automática já existe há tempo suficiente para ter ajudado a de-formar muitos mestres da atualidade.
Aliás, é bom frisar: aquilo que muitos chamam de progressão automática jamais foi nada além de aprovação automática. A progressão prevê um novo paradigma de organização das turmas, muito diferente do sistema seriado. Na progressão continuada, a avaliação não é usada para aprovar ou reprovar ao final de cada ano ou ciclo, mas para indicar quais caminhos o aluno deve percorrer. A progressão continuada também prevê um novo modo de organizar os currículos, menos enraizados na questão dos conteúdos e mais voltados às habilidades e competências, palavrinhas bonitas e já esvaziadas de significado, de tão desgastadas e violentadas pelo discurso pedagógico vigente, sem que haja as mínimas condições reais de que habilidades e competências sejam realmente trabalhadas e desenvolvidas.
Vivemos mais do que nunca de arremedos e simulacros, algo tão combatido por Paulo Freire; aliás, muitas críticas do atual "sistema educacional" são atiradas sobre Paulo Freire, sendo que ele, que não vive esses tempos sombrios, já criticava com veemência  o que somos obrigados a assistir hoje, como aparelhamentos, educação bancária, ensino a serviço das elites, falta de reflexão e autocrítica por parte de quem se acredita "de esquerda". Simulamos trabalhar as habilidades dos alunos, mas na verdade esperamos que eles sejam competentes apenas para realizar nossas provas e demais avaliações tradicionais e sem valor fora do ambiente escolar.
Os professores são obrigados a repetir um discurso inovador sobre educação, mas a prefeitura de São Paulo acaba de voltar a tratar provas bimestrais e lição de casa como fetiches e panaceias que, já estamos bem cientes disso, não resolverão aquilo que esperamos que resolvam − vale lembrar que lição de casa e provas já fazem parte da rotina de muitos alunos e professores; eu mesmo trabalho com ambos, sem esquecer de lidar com outros instrumentos de avaliação. A conversão errada nos enfiou a todos na contramão do futuro e do aprendizado com propósitos relevantes.
Tenho a sensação de que todas as teorias sobre educação, ao menos todas as verdadeiramente relevantes, já foram estabelecidas, incorporadas, domesticadas, adoçadas e, de tão distorcidas na prática, viraram nosso terror e amargura. O que conta agora é buscar caminho para efetuá-las de acordo com cada realidade regional, de bairro, de sala, de aluno, até. Levar a realidade local em conta, aliás, já é parte de uma teoria sobre educação. Reprovar, na maioria das vezes, é apenas uma força de coerção e de vingança. "O cara que não fez nada o ano inteiro não pode passar". O que precisamos descobrir é se esse cara aprendeu alguma coisa positiva que lhe será de algum modo útil ou caro ao longo de sua vida.
A briga não deve ser pela reprovação, mas por instrumentos que auxiliem na disciplina e propiciem um ambiente propício para a relação ensino-aprendizagem − que um não existe sem o outro já virou clichê sem ser devidamente problematizado e levado em conta no cotidiano escolar. A prova, mensal, bimestral ou seja lá o que for, é um instrumento de avaliação que já foi demonizado e agora ressurge como uma espécie de redenção; mas se ela não é a vilã do sistema escolar, tampouco pode ser considerada sua redentora. Ela é apenas um instrumento de avaliação que serve em algumas situações e é opressiva ou inútil em outras. A lição de casa pode ser uma necessidade de um determinado contexto pedagógico e pode também não passar de um castigo bobo ou uma espécie de satisfação aos pais que ao verem seus filhos atarantados com cadernos e livros pela casa terão a sensação de que seus filhos estão aprendendo, mesmo que as lições de casa sejam tão trabalhosas quanto burras e sem sentido. Mas, para quem "relançou" a prova bimestral e a lição de casa como propostas pedagógicas, certamente quer lidar mais com as sensações e menos com os problemas de fato.
Por fim, vale ressaltar que educação, sempre e sempre, é um ato político. Política sempre exigirá escolhas, tomadas de decisão e de partido, ainda que rejeitemos os "partidos políticos", que na verdade nem merecem esse nome e deveriam ser chamados de "partidos fisiológicos". Escolher um lado e tomar decisões significa necessariamente que não é possível agradar a todos, ainda que em assuntos públicos, devamos trabalhar para todos. A atual proposta da prefeitura de São Paulo propõe medidas que pretendem agradar a gregos e goianos, mineiros e troianos: por um lado quer mostrar aos professores que com a volta da retenção, da lição de casa, da prova bimestral e do TCC, pretende "disciplinar" os alunos e permitir que os professores possam voltar a lecionar de verdade. Por outro, pretende mostrar aos pais que os professores terão de trabalhar de verdade, como se passar prova e lição de casa fosse sinal de "trabalho verdadeiro" por parte dos professores; alguns dos colegas mais preguiçosos, omissos e acomodados que conheço trabalham justamente em cima da prova e da lição de casa. Enquanto isso, por debaixo dos panos, cria mecanismos para que as retenções não sejam em grande número, querendo vincular os rendimentos do magistério aos números de aprovação.

Não poderia haver conduta mais covarde. Com medo ou vergonha de  assumir que realmente a retenção é um retrocesso, a prefeitura berra que ela voltou, mas vigia e pune o professor que reprovar acima do "esperado". Assim, o governo fica bem com órgãos internacionais ao menos no plano das intenções, embora provavelmente continuará a ostentar níveis vergonhosos em qualquer tipo de avaliação de sistema escolar. Mas condições reais de trabalho para nós, os professores, e criar ambientes verdadeiramente  adequados para o aprendizado, o governo não quer dar, não.

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