terça-feira, novembro 26, 2013

"Branquelo azedo":


A diferença entre racismo e mimimi
A cena mais forte já produzida pelo cinema brasileiro − é bom começar com afirmações definitivas, nos fazem sentir importante e sábio, a despeito de toda nossa ignorância sobre o assunto em questão − está no filme Ó paí, ó, de Monique Gardenberg. Uma das maravilhas da internet, especialmente para escritores preguiçosos, apressados ou incapazes de fazer uma boa descrição − sou muito de tudo isso − é que ela pode nos dispensar do sacrifício e nos permite mostrar direto aquilo de que estamos falando. É disso que estou falando:

A cena emociona pela dissecação do que é racismo de verdade: o fato de alguém julgar a si mesmo superior aos que são diferentes dele, seja pela cor, seja por alguma outra marca étnica, que pode variar de nuances no tom da pele até o tamanho do nariz, a largura da testa etc. Quando o racismo despenca na cabeça de alguém, demonstra-se completamente covarde, por transformar característica em defeito e impedir a vítima de qualquer defesa que não soe ridícula, como as tentativas de clareamento da pele, as técnicas de estiramento de fios capilares, as lentes de contato coloridas: tudo isso, quando feito não por uma simples questão pessoal estética, mas para tentar apagar as marcas de quem a pessoa é −ninguém pode ser definido apenas pela etnia; contudo, renegar a própria origem e herança cultural e genética é um modo triste de autoamputação.
Racismo não é apenas colocar um "apelido" em alguém. É, entre muitas outras coisas, manipular a história e a ciência para rebaixar o outro e dar a si mesmo um lugar de honra. "Explicitar" a inferioridade dos outros é a desculpa quase perfeita para justificar desmandos, injustiças, para "legitimar" genocídios e toda sorte de atrocidade.
Mas é fácil perceber que o racismo é mais eficiente quando a própria vítima do preconceito o introjeta e passa a viver pautado pela própria discriminação que recebe como sendo algo natural. Dá bem mais certo e é bem mais econômico do que a guerra, além de confundir bem mais as pessoas em geral.
Desde criança ouço duas afirmações sobre racismo que sempre considerei, para ser franco, abjetas. A primeira delas acerta na afirmação, mas esconde uma sordidez absurda: "não é só o negro que sofre preconceito". É claro que não é só o negro que sofre preconceito. Mulheres, indígenas, ciganos, evangélicos, judeus, católicos, umbandistas, homossexuais, espíritas, capoeiristas, sambistas, policiais, professores, literatos, mestres de obras, serventes de pedreiro, encanadores, garis, funcionários públicos, nordestinos, gaúchos, imigrantes, brasileiros em geral, analfabetos, pobres etc., todos são vítimas em potencial de ações discriminatórias. Até aí, e daí? O problema é quando a pessoa que traz essa constatação brilhante à tona, a de que não é só o negro que sofre preconceito, usa exemplos que normalmente carecem de reflexão mais profunda.
Acabo de ler, por exemplo, a "observação" de que, se em uma briga de trânsito, um negro for xingado de macaco e retrucar ao seu oponente branco o chamando de "branquelo azedo", os dois incorreram em racismo. É fato que ambos foram grosseiros e que tiveram atitudes reprováveis. É fato que cada um dos agressores, ao se sentir ofendido em sua honra pode buscar, amparado na lei, a reparação que julgar proporcional à injúria sofrida. Mas também é fato que o peso da ofensa é maior na medida em que ela acompanha uma série de práticas históricas na sociedade que discriminam, humilham, e separam as pessoas em "castas". Chamar alguém de macaco, é dar a ele características de um animal irracional incapaz de pensamentos elaborados, muitas vezes dócil e fácil de domesticar. É dizer ao injuriado que ele é inferior e deve se colocar em seu lugar de "quase coisa", é afirmar que o "macaco" em questão até pode ser aceito na sociedade, desde que saiba se comportar, não pretenda estar no mesmo nível dos seres "plenamente humanos" e respeite os "superiores".
Aquilo que parecia ser apenas um "xingamento em momento de fúria", algo grosseiro, mas inocente, revela toda uma visão de mundo compartilhada surdamente por boa parte da sociedade. Já, chamar alguém de "branquelo azedo", é sim, uma grosseria enorme e igualmente imperdoável, mas o peso histórico desse xingamento não envolve escravidão, violência policial, discriminação no mercado de trabalho. O branquelo azedo é menos parado pela polícia, é representado positivamente na mídia, geralmente não é discriminado no mercado de trabalho.
Já vi brancos serem hostilizados em grupos de negros. Já vi, por exemplo, cantores brancos extremamente competentes serem humilhados em corais onde predominavam cantores negros, com piadinhas de péssimo gosto, com o cantor branco sendo ignorado e repreendido a todo instante. Naquele caso, os negros se julgavam superiores ao branco, negando a ele condições de exercer, no caso a sua arte. Já vi nas poucas quadras públicas onde é possível jogar basquete brancos e mestiços "desbotados" − como eu − serem hostilizados e até proibidos de jogar, fora terem de ouvir "gracejos" racistas a todo instante. Foram situações grotescas, absurdas, que merecem repúdio. Mas não podem ser comparadas em alcance e número de ocorrências com o racismo que ocorre contra negros ou qualquer um que não seja branco, ainda que azedo. Não pretendo discutir aqui se a postura dos membros do coral ou dos "basqueteiros" foi uma espécie de resposta histórica às discriminações e abusos contra negros, nem que, sendo eles ainda discriminados em boa parte da sociedade, ali seria um dos poucos ambientes onde seus talentos e culturas poderiam ser devidamente valorizados. Não creio que todos os atos de todas as pessoas são conscientemente políticos, ideológicos ou contestadores; também não credito que o erro de lá é o salvo-conduto de cá: nesses casos, houve sim, a despeito de qual teria sido a intenção dos envolvidos, preconceito racial, que pode ter acarretado problemas emocionais significativos aos que não conseguiram lidar de forma saudável com a discriminação que sofreram. Agora, daí a querer colocar na mesma balança as consequências do racismo histórico e com a conivência de tanta gente importante, com o xingamento covarde feito em uma briga de trânsito já é demais. Querer equiparar a grosseria racista com as discriminações praticadas no trabalho, na mídia, nas escolas é um disparate. Ignorar que durante anos os negros foram retratados ou como escravos, ou como marginais, ou como serviçais, o que só reforça o imaginário popular de que eles são mesmo inferiores do ponto de vista intelectual, fazendo sucesso apenas em áreas restritas da música e dos esportes, é hipocrisia. Rotular o negro que ao se sentir ofendido ou injustiçado de "coitadinho" e "folgado" é vergonhoso.
A segunda afirmação que me causa náuseas é bem menos discreta: "o preconceito começa com o próprio negro; eles têm preconceito entre eles mesmos!". Aqui a hipocrisia é bem menos sutil. É como se dissessem "se os próprios negros se tratam de forma grosseira e racista, por que eu, que nem negro sou, não posso, por exemplo,  contar piadas racistas?".
De fato, conheci mais de uma pessoa negra que tinha opiniões racistas sobre os próprios negros, inclusive na minha família. Mas, em vez de considerar o comportamento dessas pessoas uma prova cabal de que a criminalização do racismo é algo incoerente, vejo com clareza que o pensamento racista que emanou das classes superiores desde, sei lá, Cabral, continua firme e operante. Refletir sobre o que leva uma pessoa negra a discriminar sua própria etnia e origem, ninguém quer, né?
Separar racismo de bulllyng (o que também é um problema gravíssimo e até pode estar misturado com racismo que deve ser combatido com seriedade, mas é outra coisa), ou do mero mimimi de quem não sabe o que é ser constantemente suspeito por causa de sua irremediável cor de pele é algo de grande urgência.

Finalizo lembrando os nomes de dois raps dos anos 90. O primeiro se chama A cor da pele não importa nada feito por artistas brancos que faziam parte do pioneiro movimento hip hop em São Paulo; o segundo, feito pelo rapper negro Dexter, é uma resposta aos realmente bem-intencionados rappers brancos e se chama A cor da pele não importa o caralho

Nenhum comentário:

Seguidores