terça-feira, junho 24, 2014

Vagabundos e machistas


Antonio Prata, em mais uma crônica magistral, disse que a Copa do Mundo é uma espécie de "salvo conduto para a vagabundagem". As pessoas adoecem estranhamente nas horas do jogos mais importantes, procrastinam compromissos para ver os menos interessantes. Acho que o fenômeno é ainda mais profundo.
Nos lares onde as mulheres não são tão chegadas a futebol, se preocupando apenas com os jogos da seleção brasileira, tenho observado que a Copa do Mundo, especialmente essa, no Brasil, é uma espécie de licença temporária para o machismo. Como todos os jogos viraram promessa de grandes partidas, nós, que amamos futebol e ainda mais Copas do Mundo, nos estampamos no sofá e deixamos tudo que não tenha bola, hinos nacionais e chuteiras coloridas para depois. Como nos imaginamos diante de homens poderosos que decidirão em uma palavra, ou drible, o futuro do universo, e sentimos, com nossas compulsões e superstições, que também participamos diretamente aquilo, nos sentimos muito à vontade para pedirmos uma série de "favores" que, em outros momentos, soarão exagerados, de mau gosto, preguiçosos e, finalmente, machistas.
Um petisco, uma bebida, almoço e janta na mão, na cama, coloca o lixo pra fora, lavar a louça e a roupa e, em casos mais patológicos, até banho de esponja e passar fio dental são solicitações feitas sem a menor cerimônia. Se a esposa ou namorada reclamar, se disser que não vê lógica nesse comportamento patológico, você dirá, com restos de salgadinho e biscoito recheado colados na barba por fazer, que ela "não entende dessas coisas", o que poderá soar, muitas vezes com mundos e fundos de verdade, que esse envolvimento com o futebol é "coisa de homem".
Sim, é verdade que  as coisas vêm mudando muito, que são vários os homens que preferem filmes e livros a futebol, e são várias as mulheres que entendem e praticam o futebol com muito mais amor e conhecimento que qualquer perna de pau barbado. Mas os casais que mantêm um perfil mais clássico sobre o futebol, podem sofrer com machismo enrustido liberado pelo "estado de Copa". Se eu disser que esse machismo ocasional é inofensivo, falo em causa própria e as feministas me odiarão. Se disser que isso é a prova de que estamos em um momento cínico que comprova a manutenção dos maus hábitos machistas, creio que exagero.
Creio haver saídas para a paz familiar. No último domingo, por exemplo, incentivei ardorosamente que meu cônjuge fosse ao show dos Titãs no SESC Interlagos, na companhia da minha distinta cunhada, enquanto eu e o namorado da minha sobrinha nos refestelávamos com um dos jogos mais divertidos da Copa: Argélia e Coreia do Sul. Foram seis gols, algumas belas jogadas. Depois as duas foram felizes e aliviadas por não precisarem ver nem Argélia e Coreia do Sul nem Portugal e Estados Unidos, um jogo cheio de emoções − para quem vê alguma emoção em jogos sem a presença da seleção brasileira.

Hoje, após esse jogo com muita emoção e pouco futebol entre Uruguai e Itália, vou lavar uma locinha, passar o aspirador e fazer um arroz. Quando meu cônjuge chegar do trabalho, vai poder tomar um banho, beber alguma coisa refestelada no sofá e assistir, relaxada e feliz, a algum seriado; ou, como forma de agradecimento, assistir a algumas mesas redondas comigo, afinal os tempos são outros…

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